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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Hepatite misteriosa: Jovem de PE só viveria 48h sem transplante, diz médico

Iasmim, de 14 anos, está internada no Hospital Oswaldo Cruz, no Recife - Arquivo pessoal
Iasmim, de 14 anos, está internada no Hospital Oswaldo Cruz, no Recife Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

25/05/2022 04h00

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A adolescente com suspeita de uma nova forma de hepatite de origem desconhecida não sobreviveria por mais de dois dias se não tivesse passado por um transplante de fígado, realizado na sexta-feira (20). A avaliação é do médico Cláudio Lacerda, chefe da equipe da unidade de transplante de fígado do Hospital Oswaldo Cruz, no Recife, onde ocorreu a cirurgia.

Maria Iasmim, 14, deixou a cidade de Caruaru (PE) no último dia 18 rumo ao hospital para passar passar pelo procedimento. Ela se recupera bem.

"Sem um transplante ela provavelmente só iria sobreviver de 24 a 48 horas. Foi muita sorte porque a conseguiu listá-la como prioridade no país", diz Lacerda, que também atua como professor titular de cirurgia abdominal da UPE (Universidade de Pernambuco).

Segundo o professor, a equipe do Recife precisou acionar o Sistema Nacional de Transplantes, com sede em Brasília, que aceitou e conferiu prioridade ao caso da garota. "Aí surgiu um fígado compatível de um homem de 30 anos. A família permitiu, e a equipe fez a retirada." Uma equipe de 20 profissionais acompanhou a cirurgia. O órgão levado ao Recife em um voo da FAB (Força Aérea Brasileira).

Gravidade percebida ainda em Caruaru

A paciente mora no sítio Bruaca, no município de Ibimirim, a 338 km do Recife, no sertão pernambucano. Antes de chegar à capital, passou por atendimentos em Arcoverde e Caruaru, onde chegou a ficar internada por dois dias.

Iasmim começou a apresentar olhos amarelados cerca de 15 dias antes do transplante - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Iasmim começou a apresentar olhos amarelados cerca de 15 dias antes do transplante
Imagem: Arquivo pessoal

A mãe dela, Lucineide da Conceição, que conversou com a coluna na sexta-feira passada, contou que Iasmim começou a apresentar fraqueza, sonolência e falta de apetite. Quinze dias antes do transplante, estava com os olhos amarelos.

Para Cláudio Lacerda, a vida da adolescente foi salva quando os médicos do Hospital Mestre Vitalino, em Caruaru, perceberam a gravidade do caso e a encaminharam para transplante com urgência no Recife. "Se eles não tivessem feito isso, se decidissem ficar com ela lá internada, em 48 horas ela morreria ou chegaria ao ponto de não reversibilidade, em que não daria mais para transplantar", explica.

Lacerda lembra que, assim que a paciente chegou, ele percebeu que o quadro era gravíssimo. Iasmim, então, entrou em coma e foi levada à UTI (Unidade de terapia intensiva) e intubada à espera de um novo órgão.

Quadro semelhante a outras hepatites

Lacerda explica que, do ponto de vista clínico, o quadro de Iasmim e o fígado dela tinham características iguais a de qualquer paciente com falência do fígado causada por hepatite. "Essa adolescente desenvolveu um quadro que, no início, parecia habitual, com sintomas que você vê em pacientes que têm hepatite A, B, C ou tem alguma hepatite relacionada a medicamentos a outras origens", diz.

Hospital Oswaldo Cruz, no Recife, onde Iasmim passou por transplante - Divulgação - Divulgação
Hospital Oswaldo Cruz, no Recife, onde Iasmim passou por transplante
Imagem: Divulgação

Até mesmo o curso da doença teve sintomas e prazo de manifestação idênticos ao das hepatites já conhecidas.

"O comportamento clínico foi o mesmo: o paciente começa a ter sonolência, falta de apetite, fica febrícula, tem icterícia [olhos amarelados], urina escura e, em alguns casos, um pouco de dor abdominal", explica.

Só que, no caso dela, diz, a doença evoluiu para uma gravidade extrema, a chamada hepatite fulminante. "Mas não se identificou nenhum agente etiológico, nenhuma causa para hepatite, o que nos chamou a atenção para ser essa possível hepatite misteriosa", afirma.

O médico conta que vem acompanhando com atenção os casos que ocorrem no mundo. Segundo ele, o que mais chama a atenção é o percentual de casos graves muito maior que as hepatites tradicionais. Dados do Reino Unido apontam que há necessidade de transplante, em média, a cada dez casos conhecidos.

Segundo o último boletim médico, Iasmim segue na UTI, mas foi extubada [retirada do tubo para respiração] nesta segunda-feira (23), está acordada e iniciou dieta líquida. Ela deve ser transferida ainda hoje para um leito de enfermaria, onde deve permanecer em observação por pelo menos mais duas semanas. "Está evoluindo muito bem", comemora Lacerda.

Iasmim vai precisar tomar medicação a vida toda, mas que [a dose] vai diminuindo com o passar do tempo. Periodicamente vai passar por uma avaliação médica, mas a qualidade de vida dela será normal, sem nenhuma restrição.
Cláudio Lacerda, hepatologista

Iasmim, na maca, e a mãe dela durante transferência de Caruaru para o Recife - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Iasmim, na maca, e a mãe dela durante transferência de Caruaru para o Recife
Imagem: Arquivo pessoal

Fígado guardado e sangue congelado

As investigações sobre o que causou o problema em Iasmim seguem em curso, sem qualquer indicação até o momento. Vários exames foram feitos e alguns resultados ainda são aguardados.

O principal agente suspeito relacionado à doença na Europa não foi encontrado nos exames dela até agora. "A investigação está em curso, o resultado foi negativo para todos os vírus", explica Lacerda. Para ajudar a desvendar o mistério, foram colhidas amostras do fígado para pesquisa.

O fígado dela também vai ser guardado para posteridade, para eventuais estudos no futuro; e o sangue dela foi retirado e congelado para que, no dia em que os pesquisadores identificarem o vírus [causador dessas nova hepatites], tenha a possibilidade de pesquisarem o caso.
Cláudio Lacerda, hepatologista

Segundo informou a mãe, Iasmim não teve covid-19, apontada como uma das possíveis causas da hepatite misteriosa. O médico afirma que, apesar do que diz a família, é possível que a jovem tenha contraído a forma assintomática da doença.

Américo Gusmão e Cláudio Lacerda coordenaram o transplante nessa tarde - Marília Falcão/HUOC - Marília Falcão/HUOC
Américo Gusmão (esq) e Cláudio Lacerda (dir) coordenaram o transplante em Iasmim
Imagem: Marília Falcão/HUOC

Casos só crescem

Os casos da hepatite misteriosa começaram a surgir em abril no Reino Unido e rapidamente se espalharam pela Europa. Ainda no mês passado, EUA e Israel relataram casos, que se espalharam pelo mundo.

Até sexta-feira, o Brasil registrou 73 casos suspeitos em 13 estados. No mundo, o número já chega a 429. Em Pernambuco, foram seis casos registrados, cinco em investigação e um descartado.

A nova manifestação da hepatite elevou a gravidade das hepatites já conhecidas. Na Europa, as crianças têm necessidade de transplante de fígado em 1 a cada 10 casos, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde).

"Temos [nos vírus já conhecidos de hepatite] um caso entre mil e 10 mil que pode evoluir para forma fulminante. Esse percentual de um a cada 10 é grande, indica uma doença bem mais grave que a que vemos hoje", afirma o professor e hepatologista do Complexo Hospitalar da UFC (Universidade Federal do Ceará) José Milton de Castro Lima.

A nova hepatite aguda tem causado em crianças sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal, diarreia e vômitos e aumento dos níveis de enzimas hepáticas, além de icterícia e ausência de febre.

O mistério da hepatite ocorre porque os vírus comuns que causam hepatite viral aguda (A, B, C, D e E) não foram detectados em nenhum dos casos.

De acordo com as investigações no Reino Unido, o adenovírus pode estar associado à transmissão dos casos. "Entre 163 casos do Reino Unido, 126 foram testados para adenovírus, dos quais 91 tiveram adenovírus detectado [72%]. Entre casos, o adenovírus foi detectado principalmente no sangue", afirma documento da Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido.

Uma das hipóteses estudadas é que o adenovírus tenha adquirido uma mudança de patogenicidade em crianças que tenham tido contato com o novo coronavírus. Entretanto, os estudos ainda estão em andamento.