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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Buscas no AM: Vale do Javari sofre com ataques e cerco de invasores há anos

Indigenista e jornalista desapareceram quando viajavam para a cidade de Atalaia do Norte, localizada no Vale do Javari (AM) - Adam Mol/Funai
Indigenista e jornalista desapareceram quando viajavam para a cidade de Atalaia do Norte, localizada no Vale do Javari (AM) Imagem: Adam Mol/Funai

Colunista do UOL

07/06/2022 04h00

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O desaparecimento de um indigenista e de um jornalista britânico desde a manhã do domingo (5) no Vale do Javari (AM) revelou uma escalada de ataques e cerco de invasores que ameaçam a terra indígena com mais povos isolados do mundo.

Invasores ligados a pesca e caça ilegal, garimpo, extração de madeira ou mesmo traficantes fizeram do local uma espécie de barril de pólvora para quem lutava para defender a área, segundo Francisco Loebens, integrante no Amazonas da equipe de apoio a povos livres do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

As piores ações foram registradas em 2019, quando uma base da Funai no Vale foi atacada a tiros por caçadores clandestinos. Foi o quarto ataque em pouco mais de um ano.

O desaparecimento

O servidor licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) Bruno Araújo Pereira e o jornalista Dom Phillips, que viajavam de barco até a cidade de Atalaia do Norte, eram aguardados por duas pessoas ligadas à Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Após um atraso de mais de duas horas, entidades indígenas perceberam que havia algo errado e começaram as buscas, sem sucesso.

Bruno vinha sendo alvo de ameaças de garimpeiros, madeireiros e pescadores. Em carta reproduzida pelo jornal O Globo, pescadores prometeram "acertar contas" com ele.

O caso está sendo apurado por uma força-tarefa que inclui PF (Polícia Federal), Marinha, MPF (Ministério Público Federal), Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari e governo do Amazonas.

A região

A Terra Indígena do Vale do Javari reúne 26 povos indígenas, dos quais apenas sete foram contatados até hoje e 19 deles vivem isolados.

Onde o indigenista e o jornalista desapareceram - Arte/UOL - Arte/UOL
Imagem: Arte/UOL

Loebens também conhece bem o local e explica que o vale tem um histórico de invasões que distribuem por praticamente todo o local.

Para o lado do sudoeste, na região em direção ao Acre, há atuação dos garimpeiros. Na parte oeste, na divisa com o Peru, dois tipos de invasores predominam: os madeireiros e os traficantes de drogas.

O maior problema, porém, está no centro da terra indígena, onde há conhecidas e reiteradas invasões de caçadores e pescadores. "Esse tipo de invasão se intensifica na época do verão [amazônico, de junho a setembro], seja para coleta de ovos, seja para busca de quelônios [grupo que reúne todas as formas de tartarugas]. E sempre são tensas essas invasões", diz.

18.jun.2021 - A base da Funai do rio Itui, região visitada pelo jornalista inglês Dom Phillips e pelo indigenista Bruno Pereira, desaparecidos desde domingo (5) - Lalo de Almeida/Folhapress - Lalo de Almeida/Folhapress
18.jun.2021 - A base da Funai do rio Itui, região visitada pelo jornalista inglês Dom Phillips e pelo indigenista Bruno Pereira
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

Sob tensão

Também em 2019, o assassinato de um colaborador da Funai em Tabatinga (AM) deixou os indigenistas ainda mais preocupados com a tensão no local. "Nunca se ligou o crime à questão das invasões. Esse fiscal participava das frentes ativas, a mesma de que Bruno [que agora está desaparecido] participava", diz.

O integrante do Cimi conta que a situação vem piorando porque a Funai foi deixando de lado a segurança no vale, reduzindo as equipes e fechando bases na região

"Essa tensão [pelas invasões] sempre existiu, mas nunca atingiu os indígenas diretamente. A nossa preocupação agora é, com a falta de capacidade operacional das frentes, os invasores se sentirem mais à vontade de poderem reagir às abordagens ou perseguir pessoas que estão na fiscalização da área. Há uma necessidade de se reforçar as bases da Funai.

No caso do avanço de invasores, o pior cenário ver povos isolados serem atingidos. "Nessa época de verão aumenta também os grupos de isolados, que são vistos mais nas margens dos rios maiores. Eles se deslocam em função dos recursos e da coleta de ovos. Faz parte da dinâmica deles", conta.

A coluna procurou a Funai para que o órgão se manifestasse sobre a falta de proteção aos povos indígenas do Vale do Javari, e se pensava em reforçar a segurança no local, mas não obteve retorno. Não houve qualquer manifestação do órgão sobre o caso até ontem na página oficial da fundação. O espaço está aberto para um posicionamento.

O jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira  - Foto@domphillips no Twitter e Bruno Jorge/ Funai  - Foto@domphillips no Twitter e Bruno Jorge/ Funai
O jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, e o indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira
Imagem: Foto@domphillips no Twitter e Bruno Jorge/ Funai

Apreensão

Para Loebens, o desaparecimento de Phillipis e Pereira é "extremamente preocupante". Ele diz ser pequena a chance de que eles tenham tido algum problema, já que equipes saíram em busca deles e não encontraram qualquer indício.

"Eles estavam próximos a Atalaia do Norte, uma área que tem até um bom sinal. Pelo que soube, já foram feitas viagens em busca deles. A não ser que eles tenham entrado em algum afluente, não há como pensar em problema [na embarcação]. E eles tinham uma agenda prevista, teriam dado notícia", finaliza.

Bruno é pai de três filhos. Dois deles com a antropóloga Beatriz de Almeida Matos, companheira do indigenista. "Ele precisa voltar para casa", disse à Folha. "Eu conheço bem a região, sei que podem acontecer vários acidentes. Mas estou apreensiva por causa das ameaças que ele sofria", afirmou a antropóloga, que também atuou com povos indígenas.

Tamakuri Kanamari, presidente da Associação Kanamary —que representa o povo do Vale Javari e rio Itacoaí—, explica que onde Bruno e o jornalista estão desaparecido não há tráfico de drogas. "Lá são madeireiros, caçadores e pescadores que exploram o nosso território", afirma.

Ele conta à coluna que os traficantes atuam no rio Javari e cruzam a terra sem qualquer problema. "Ali é a rota dos traficantes, que chegam ao rio Curuçá vindos de Angamas [município do Peru]", conta.

"Nós e o movimento indígena estamos sendo ameaçados há muito tempo. Estamos lutando, junto com nossos indigenistas, para defender o nosso território. Queremos ajuda dos governos, porque não temos nada hoje", afirma.