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"Paramos no tempo", diz médico excomungado pela Igreja por abortos legais
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Em agosto de 2020, o médico obstetra Olímpio Moraes ofereceu o Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), onde era diretor, no Recife, para receber uma menina de 10 anos do Espírito Santo que estava grávida após ser estuprada pelo tio.
No caso, a interrupção da gravidez na criança foi feita após protestos de grupos de religiosos e políticos radicais, que foram à porta do Cisam chamar ele e a menina de assassinos. A menina precisou entrar no porta-malas do carro, escondida, para realizar o procedimento.
Quase dois anos depois, Moraes —que já foi excomungado pela Igreja Católica— vê com apreensão a história se repetir, desta vez com uma criança de 11 anos que queria finalizar sua gravidez após ser estuprada, mas foi impedida pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, em Santa Catarina. Ontem, foi informado que ela conseguiu fazer o aborto.
Segundo ele, não é de agora que o país tem "parado de caminhar", mas, sim, quando houve uma ascensão de relevância da chamada bancada da bíblia na Câmara, que passou a travar modernização de normas e legislações sobre o tema. "Estamos parados no tempo há pelo menos 10 anos", diz.
"Até 2010, a gente estava avançando, mas depois saiu da pauta sucessivamente, porque as pessoas [contrárias] aumentaram seu poder de influência. Sempre que um governo [no caso, Dilma Rousseff] se fragiliza, a primeira moeda de troca são os direitos das mulheres. Sempre é assim", lamenta.
A tendência era, depois de tantos anos de conhecimento, avançarmos. Toda sociedade democrática avançada adota políticas públicas que ampliam esses direitos a mulheres, aos direitos humanos, mas a gente parou. O momento atual, diria, é só a cereja do bolo.
Olímpio Moraes Filho
Agora, no governo Jair Bolsonaro, Moraes diz que "mudou muita coisa". Ele cita que há tentativas de retrocesso ainda maiores.
"Esse governo tenta bloquear o acesso ao serviço. Veja também o novo manual lançado recentemente pelo ministério. Antigamente era feito pela Febrasgo [Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia], com uma equipe multiprofissional da saúde e direito. Agora ele vem com mentiras e dados isolados que distorcem e dizem que o aborto não é seguro", afirma.
Entretanto, ele diz que após a repercussão do caso da menina do Espírito Santo, muitos serviços começaram a fazer o procedimento pelo país. "As pessoas não vão mais aceitando [a negativa de oferecer o serviço]. Aquele caso serviu para trazer o debate e nos deixou mais unidos na causa", relata.
Cisam reoferece estrutura
Novamente, o Cisam ofereceu sua estrutura para fazer o aborto da criança catarinense, como fez em 2020, mas ela realizou o procedimento no mesmo hospital que, anteriormente, se negou a fazer o primeiro atendimento. "Em qualquer lugar pode ser feito, é só a vontade de fazer", diz Moraes.
O caso da menina em Santa Catarina é idêntico ao que o Cisam atendeu no Recife no que se refere ao tempo de gestação.
"Na medicina existe um conceito de que abortamento é até 22 semanas, quando o nascimento é considerado inviável: ele não sobrevive porque não tem pulmão; mas depois, a partir de 23, 24 semanas você começa a chance de nascer com vida, mas com chance remota [de sobreviver depois]", diz.
Moraes ressalta que, em todos os casos, deve-se respeitar a autonomia da família na decisão de querer ou não abortar. "Passados 22 semanas, é preciso induzir à parada cardíaca [de feto] através de uma injeção. E esse procedimento, nesse caso, acaba esbarrando no desconforto de alguns profissionais", diz.
Entretanto, importante citar que a lei não cita prazo para que uma vítima de estupro queira interromper a gravidez. "Não é necessário pedir autorização judicial. O limite quem colocou fomos nós [médicos], mas por limite operacional e ético", explica.
Para ele, diante das convicções pessoais, alguns médicos ficam receosos de fazer o aborto após 22 semanas de gestação. "Aí eles pedem para que a mulher ou família dela busque o Judiciário apenas para tirar o peso da consciência".
O acesso ao aborto legal é autorizado no Brasil em três situações: quando a gestação é decorrente de estupro, quando oferece risco de vida à gestante e em caso de anencefalia do feto —essa última adicionada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2012.
Longa história de defesa
Moraes tem uma longa história de defesa para que mulheres pobres tenham direito a aborto legal pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Ele é diretor Febrasgo, entidade que foi pioneira no debate e produção de protocolos sobre aborto legal no país.
Ele e a federação tratam o abortamento como um problema da saúde pública. A entidade, que tem 16 mil sócios, tem uma comissão —entre suas 29 comissões— que desde 1990 atua e estuda a violência contra a mulher por abortamento previsto em lei.
"Historicamente, esse grupo trabalhou antes mesmo do Ministério da Saúde que fez os primeiros serviços, produzimos os manuais e protocolos, mas agora houve uma quebra", lembra.
A quebra, diz Moraes, é que a Febrasgo deixou de participar. "A gente não é mais chamado para opinar sobre isso, uma coisa absurda desse governo".
Em compensação, diz, médicos e profissionais de saúde criaram um laço mais articulado nesse período para defender o direito das mulheres que querem fazer o aborto legal.
"Hoje a gente fala abertamente sobre o tema, temos do nosso lado profissionais, imprensa, juristas", comemora.
Situação diferente ocorreu em 2009, por exemplo, quando ele foi excomungado ao receber e fazer um aborto de gêmeos, também no Cisam, de uma menina de Alagoinha (PE) estuprada pelo padrasto e que causou uma grande repercussão.
O arcebispo local o excomungou, assim como fez com e toda a equipe médica. "Foi um caso até mais repercussão que esse [do Espírito Santo], teve imprensa fora do Brasil falando", lembra.
A situação não é a mesma. Há muito ódio desse pessoal, mas há uma resistência maior que havia há 15, 20 anos. Temos hoje mais médicas na minha especialidade do que médicos, quando falamos de profissionais até 40 anos.
Olímpio Moraes Filho
Em 2015, ele participou de uma audiência no Senado em que defendeu o direito ao abortamento de mulheres e fez duras críticas à elite brasileira, que muitas vezes seria contra o direito, mas paga por abortos ilegais em clínicas privadas.
História e avanços
Moraes lembra que a lei que instituiu o aborto no país é de 1940, no governo de Getúlio Vargas. "Quando o Congresso promulgou a lei, ninguém excomungou ou chamou Vargas assassino. E olha que fizemos uma lei que nem o Canadá e os Estados Unidos tinham", explica.
Naquela época, entretanto, o aborto era decidido pelo "dono" da mulher. "As tradições familiares diziam que era degradante ter um sucessor que não fosse do núcleo da família. Isso só passou a ser na pauta de costumes e a partir da criação do SUS [em 1988]", afirma.
Parte da resistência sobre o tema ainda hoje, diz, vem da interpretação —para ele equivocada— de cristãos sobre o aborto.
Tem pessoas religiosas que trabalham aqui comigo que vão à missa toda semana e estão aqui. Isso é muito interpretação, Jesus Cristo não condenou ninguém e ficou sempre ao lado das mulheres.
Olímpio Moraes Filho
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