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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Sem escola há 18 anos, geração indígena tem aula sob árvore no sertão de AL

Ao todo, 12 crianças estão matriculadas e estudam, mas não têm escola em Traipu (AL) - Arquivo pessoal
Ao todo, 12 crianças estão matriculadas e estudam, mas não têm escola em Traipu (AL) Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

25/07/2022 04h00

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É debaixo de uma árvore que as crianças da aldeia do povoado indígena Aconã, em Traipu, no sertão alagoano, estudam. Sem escola para abrigar os alunos e profissionais de ensino, os 12 estudantes matriculados no ensino fundamental até o 5º ano são obrigados a enfrentarem sol e chuva na comunidade.

A situação não é de agora. Está assim há 18 anos, segundo os indígenas. Alguns relatam ter deixado os estudos pela falta de estrutura e temem que ocorra o mesmo com seus filhos.

Só estudam em uma escola os alunos a partir do 6º ano, que são levados para uma comunidade que fica a 10 km da aldeia. O trajeto é feito de ônibus em uma estrada de barro.

Segundo os indígenas, mesmo para os matriculados no sistema público, as aulas de toda essa geração têm sido ministradas de maneira improvisada, seja debaixo de árvores, seja em casas cedidas pelos indígenas. Eles cobram uma solução do governo do estado, que é responsável pela educação indígena, há anos.

A situação na comunidade se tornou ainda mais precária, como mostrou a coluna na quarta-feira passada, por conta das chuvas do início do mês. A aldeia está ilhada, com a única estrada que faz ligação com locais vizinhos tendo sido danificada. Hoje só é possível chegar ao local de barco pelo rio São Francisco.

A lancha que poderia transportar pacientes e moradores da comunidade, por exemplo, está parada há pelo menos dois anos por falta de manutenção.

Após a reportagem, o MPF (Ministério Público Federal) em Alagoas cobrou ação da Funai (Fundação Nacional do Índio) para ajudar a aldeia de forma imediata.

Chuvas causaram muita destruição na aldeia Aconã, em Traipu (AL) - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Chuvas causaram muita destruição na aldeia Aconã, em Traipu (AL)
Imagem: Arquivo pessoal

Muito sofrimento

O auxiliar de sala Diogo Tononé, que acompanha e ensina as crianças, explica que a situação piorou neste período de chuvas intensas na região. "É uma correria só! Neste ano já mudamos três vezes de árvore, e toda a área em que dávamos aula ficou alagada", diz.

Sem proteção adequada, quando chove, os alunos acabam tendo problemas em proteger o material escolar —em especial os cadernos. "Eles tentam se proteger debaixo da árvore, mas às vezes não dá. Quando é época de verão, o problema é o sol muito quente. É muito sofrimento ao relento todos os dias", conta.

Sem ter sede para estudar, um outro problema surge: onde preparar a merenda e guardar o material, como os computadores e televisão enviados pelo governo do estado?

"O governo dá os materiais, só que, como a gente não tem o prédio, o que podemos fazer com eles? Muitos estão se perdendo. Por exemplo: foram enviados mais de dez computadores, que estão guardados, não tem onde colocar. A merenda é feita em fogão, mas ele fica à deriva. Temos televisão e armários sem usar", conta.

Diante disso, ele cita que muitos alunos têm deixado a comunidade para estudar em locais com escola. "Tem gente indo de barco todo dia cedo, voltando à noite para estudar", relata.

Não tem como cozinhar ao relento em dia de chuva. Não é fácil passar dez horas do dia sob um sol escaldante, debaixo de uma árvore, para poder dar e saber que essas crianças tenham um futuro. Eu suplico a nossas autoridades: olhem para a nossa comunidade! Temos pais que estudaram aqui e estão vendo os seus filhos passarem pela mesma situação."
Diogo Tononé, auxiliar de sala

Suriana Saraiva tem uma filha de dez anos que estuda embaixo das árvores e lamenta a condição a que ela precisa se submeter. Ela também tem uma outra filha mais velha, de 14 anos, que, por estar no 9° ano, estuda fora da comunidade.

"Temos pais aqui que estudaram nessa condição e não querem o mesmo futuro. Muitos completaram os estudos aqui e, pela dificuldade de estudar, não querem isso para seus filhos", afirma.

As crianças estão perdendo a vontade de estudar por esse sofrimento. Dia de chuva, elas não podem estudar. Agora imagine eu, uma mãe, vendo um filho nessa condição? Como fica meu coração? Eu vejo o futuro dele e de todos ser cortado."
Suriana Saraiva

Pajé José Reinaldo e o assistente de sala a Diogo Tononé na "escola" do povo Aconã  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pajé José Reinaldo e o assistente de sala a Diogo Tononé na "escola" do povo Aconã
Imagem: Arquivo pessoal

18 anos de espera

O pajé da aldeia, José Reinaldo Aconã, afirma que faz 18 anos que o ensino começou na aldeia. Desde então, ele cobra do governo do estado a construção da escola. "São quase duas décadas nesse sofrimento. A gente vai na Secretaria de Educação, dizem que vai ser construída. Todo ano dizem que vai ser construída, e cadê cumprir as promessas?", questiona.

Segundo ele, um projeto já foi feito, a planta da escola foi apresentada e até técnicos fizeram a marcação do local. "Fazem isso, e depois o processo volta para a estaca zero. A escola fica só construída no papel", afirma.

Aqui está o futuro do nosso país. São os nossos estudantes indígenas. Sinto-me muito triste em ver minhas crianças debaixo de um pé de pau. Quando chove, as crianças têm de parar a aula e correr para a casa de um índio."
Pajé José Reinaldo

A casa citada pelo pajé era a de um indígena da comunidade, que cedia a casa em dia de chuvas. Porém, recentemente ele se casou, e as crianças não têm mais local para estudar em dias de chuva.

O pajé enviou ao UOL uma foto e um relato de um encontro com o então governador Renan Filho (MDB), em 2015, quando fez uma visita a Maceió junto com outros indígenas. "Entreguei o pedido de construção da escola, ele prometeu, mas até hoje não saiu do papel", afirma José Reinaldo.

Líder indígena entrega reivindicação por escola ao então governador Renan Filho em 2015 - Arquivo/Povo Aconã - Arquivo/Povo Aconã
Líder indígena entrega reivindicação por escola ao então governador Renan Filho em 2015
Imagem: Arquivo/Povo Aconã

Escola atrasou, mas será feita, diz estado

Em resposta à coluna, a Seduc (Secretaria de Educação de Alagoas) informou que a comunidade "será beneficiada com a construção de uma escola de seis salas de aulas com quadra esportiva".

Até lá, diz, "a Seduc irá articular com a gestão escolar local um novo espaço para ambientação das aulas".

Sobre a demora, a pasta diz que o projeto precisou passar por uma adaptação porque a empresa licitada anteriormente abriu mão da execução da obra, "mas o processo licitatório já foi aberto novamente". "O prazo é que até o fim deste ano a obra seja concluída", afirma.

A pasta ainda completa dizendo que a comunidade indígena já recebeu R$ 76 mil através do programa "Rumo às Aulas 2" para manutenção das aulas para os 12 alunos da comunidade, "inclusive para custeio de um espaço adequado, melhorias estruturais deste ambiente e todas as ações pedagógicas necessárias ao processo de ensino e aprendizagem".