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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Sem acompanhamento, Auxílio Brasil tem 54% de crianças sem vacinação em dia

Cadernetas de vacinação de crianças usadas pela Prefeitura de Maceió - Polyanna Monteiro/Prefeitura de Maceió
Cadernetas de vacinação de crianças usadas pela Prefeitura de Maceió Imagem: Polyanna Monteiro/Prefeitura de Maceió

Colunista do UOL

24/09/2022 04h00

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Dados do Ministério da Saúde apontam que menos da metade das crianças de famílias pobres que recebem o Auxílio Brasil estão sendo monitoradas pelos municípios na área da saúde e estão com a vacinação em dia.

Pela lei que criou o programa, assim como já ocorria com o Bolsa Família, a vacinação em dia das crianças de até seis anos é requisito básico para a família manter o benefício. Entretanto, desde 2020, com a pandemia do novo coronavírus, esse acompanhamento praticamente parou.

A coluna teve acesso aos números até o primeiro semestre de 2022. Eles revelam que, dos 8 milhões de crianças do programa de famílias beneficiárias até junho, apenas 3,6 milhões eram acompanhadas e informaram estar com a vacina em dia (ou 46% do total). Ou seja, para os outros 4,4 milhões, não há informações ou relatos de unidades de saúde que os tenham atendido.

A supervisão dessas crianças deve ser feita pelos municípios, que informam ao governo federal eventuais descumprimentos. A portaria dos ministérios da Saúde e da Cidadania que trata do tema estabelece que é responsabilidade dos pais levar as crianças até seis anos para atendimento de saúde.

Além de vacinação, elas devem ter acompanhamento nutricional e frequentar a escola (o que vale também para os adolescentes). Já as grávidas devem fazer pré-natal.

Esse acompanhamento de condicionante também ficou prejudicado durante a vigência do Auxílio Emergencial, já que muitas famílias do Bolsa Família deixaram momentaneamente o programa para receber esse outro benefício —que não fez exigências de saúde. O pagamento do valor emergencial acabou em outubro do ano passado.

Suspensões sucessivas

Devido à pandemia, desde abril de 2020 o Ministério da Cidadania editou portarias suspendendo a aplicação dos efeitos decorrentes do descumprimento das condicionalidades. A última delas, de nº 682, em 6 de outubro de 2021, suspendeu a aplicação desses efeitos até março de 2022.

Para controle das condicionalidades de saúde, o governo adota dois meses no ano como referência: março e setembro. Apenas agora em setembro é que serão aplicadas as primeiras repercussões às famílias que não informaram o cumprimento das condicionantes no semestre anterior.

No caso, a primeira sanção prevista é uma advertência. Se no semestre seguinte ao problema isso não for resolvido, há a suspensão do pagamento. A reincidência pode levar até ao corte do benefício, em caso de descumprimentos seguidos.

Segundo o cronograma, as famílias com crianças em atraso na vacina começaram apenas neste mês a serem advertidas. Se não regularizarem sua situação até dezembro, podem ter o benefício suspenso em março do ano que vem, quando haverá uma nova repercussão do eventual não cumprimento.

Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente torna obrigatória a vacinação das crianças dentro do calendário básico de imunização.

Criança indígena recebe dose da vacina contra a covid-19 - Rovena Rosa/Agência Brasil - Rovena Rosa/Agência Brasil
Criança indígena recebe dose da vacina contra a covid-19
Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil

Vacinação em queda

A ideia de ter uma condicionante no maior programa social do país é considerada importante para aumentar as coberturas vacinais do país, que vêm em queda há pelo menos seis anos.

Em 2021, o país atingiu o menor patamar desde o início do PNI (Programa Nacional de Imunizações), com média de 68% de vacinação de crianças com os imunizantes do calendário básico. Por conta disso, doenças já erradicadas, como a poliomielite, podem voltar a ocorrer no país.

Para o presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Juarez Cunha, não há nenhuma dúvida de que a condicionalidade do Auxílio Brasil é uma ferramenta importante para que o país consiga aumentar novamente as coberturas vacinais.

"No nosso ponto de vista, ela é uma estratégia que dá retorno, porque faz com que aquela família vá à rede de saúde e se faça presente nesse acompanhamento. Estamos falando de pessoas que são as mais vulneráveis do país, e essa integração cria um vínculo [com a atenção básica] importante para os dois lados", explica.

Ele diz que a questão central de um profissional de saúde, ao ver uma caderneta de vacinação com atraso, não é punir, mas alertar que há risco às crianças e fazer cumprir o calendário.

"Quando acontecia de chegar alguém a uma unidade de saúde e ser detectado o atraso, não se tem ideia de fazer uma reclamação ao governo para que a família fique sem receber o benefício. Aproveita-se, sim, para colocar a vacinação em dia, medir e pesar a criança", afirma.

A professora e pesquisadora Rosana Salles Costa, do Instituto de Nutrição da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora da rede Penssan, afirma que os dados de crianças vacinadas no sistema de condicionalidades do Auxílio Brasil demonstram uma falta de cuidado das autoridades no acompanhamento desses menores.

"Esse governo deixa a desejar no monitoramento de vários indicadores, incluindo aí a questão vacinal e também nutricional", cita.

A gente precisa aprimorar o sistema de vigilância em saúde. O SUS hoje está abandonado. Precisamos de um olhar integral no sentido de assistência, saúde e educação. O Bolsa Família dialogava bem, tinha trabalho bom com as unidades de saúde, com o trabalho da estratégia de saúde da família."
Rosana Salles Costa, da UFRJ

O médico sanitarista Eduardo Melo, que é professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), lembra ainda que a política de condicionalidades de saúde é um vetor que contribui para ampliar a cobertura vacinal, mas ela está dentro de um conjunto maior de ações.

"A nossa vacinação já era importante antes do Bolsa Família. Quando ele chega e traz essa condicionalidade, a ação é reforçada e passa a existir uma sinergia forte com a estratégia de saúde da família. Mas nos últimos anos o SUS está sendo ameaçado e desmontado pelo desfinanciamento e por mudanças em algumas políticas", afirma.

"Em três anos, o orçamento do Ministério da Saúde perdeu cerca de R$ 30 bilhões, em virtude do dito teto de gastos, justamente quando a população mais precisa e precisará do SUS", completa.

Ele explica que essas perdas contribuem para a precarização dos serviços do SUS. "Aumentar as coberturas só é possível se for reforçado o SUS e enfrentada a desinformação. Até porque, para cumprir as condicionalidades, você precisa de profissionais valorizados, capacitados e com condições mínimas de trabalho; e tem que ter diretrizes e estratégias efetivas para chegar às regiões e populações prioritárias em termos de cobertura vacinal. A atenção básica está próxima e conhece a maior parte dessas pessoas, jogando papel decisivo nisto", finaliza.

Tela do aplicativo do programa social Auxílio Brasil - Fernando Salles/W9 Press/Estadão Conteúdo - Fernando Salles/W9 Press/Estadão Conteúdo
Tela do aplicativo do programa social Auxílio Brasil
Imagem: Fernando Salles/W9 Press/Estadão Conteúdo

Em resposta à coluna, o Ministério da Saúde informou que "orientou às Coordenações Estaduais sobre a retomada do acompanhamento obrigatório das condicionalidades de saúde para todos os beneficiários com perfil saúde na segunda vigência [semestre] de 2021, com vistas a intensificar o atendimento voltado à população vulnerável".

Essas crianças, diz a pasta, devem ser acompanhadas pela atenção primária dos municípios a cada semestre.

Sobre a suspensão da cobrança das condicionalidades, diz que, devido à situação de emergência de saúde pública pela covid-19, esse processo "sofreu grande impacto devido à necessidade de readequação dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento das demandas relacionadas a covid-19",

Isso, ressalta a Saúde, afetou as taxas de acompanhamento das condicionalidades de saúde nas duas vigências de 2020 e na primeira vigência de 2021. "Somente a partir da segunda vigência de 2021, pode-se observar a melhora do acompanhamento das condicionalidades de saúde, buscando alcançar os patamares pré-pandêmicos".

A pasta também diz que lançou um "Guia para acompanhamento das condicionalidades de saúde: Programa Auxílio Brasil" e o material "Ações de enfrentamento da má nutrição no contexto da pandemia".