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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Tortura e 'escravidão': estudo detalha cadeias para indígenas na ditadura

Prédio em que indígenas ficaram presos na antiga Fazenda Guarani, em Carmésia (MG) - Pedro Maguire
Prédio em que indígenas ficaram presos na antiga Fazenda Guarani, em Carmésia (MG) Imagem: Pedro Maguire

Colunista do UOL

19/04/2023 04h00

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Duas cadeias montadas no interior de Minas Gerais foram usadas para manter presos ao menos 400 indígenas de todo o país durante a ditadura militar. Lá eles foram submetidos a torturas e trabalho forçado —chamado pelos próprios indígenas de "escravidão". Os detalhes de como funcionaram os prédios foram tema de pesquisa do antropólogo Pedro Pablo Fermín Maguire.

Que prédios são esses?

A primeira cadeia foi instalada em 1968 e funcionou até 1972 na terra do povo Krenak, às margens do rio Doce, no município de Resplendor (MG). O local era chamado de reformatório. Lá foram detidos 94 indígenas de 15 etnias, espalhadas por ao menos 11 estados do país.

Em 1972, a segunda cadeia foi montada, após a desativação da primeira. O local foi a fazenda Guarani, em Carmésia (MG), onde vive o povo Pataxó.

O prédio usado em Carmésia era um que escravos usaram décadas anteriores. O presídio funcionou até 1979, com cerca de 300 detidos nos sete anos de existência.

Nesses prédios duas pessoas morreram e outra desapareceu, segundo investigação do MPF (Ministério Público Federal).

Em ambos os locais, a tortura ocorria por meio de espancamentos frequentes.

Quem tomava conta do local e praticava castigos era a Guarda Rural Indígena, formada por militares e indígenas ligados à PM de MG.

Qual é a pesquisa

Os estudos resultaram em tese de doutorado em Antropologia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

O trabalho foi na área de arqueologia histórica e contemporânea. O título é "Foi a escravidão", uma referência às falas ditas por pessoas que viveram aquela época.

Nas cadeias imperou um regime de terror, trabalhos forçados e torturas.
Tese de doutorado de Pedro Maguire

Lado exterior da cela fotografados por Pedro Maguire - Tese de Pedro Maguire - Tese de Pedro Maguire
Lado exterior de celas do "reformatório"
Imagem: Tese de Pedro Maguire

"Escravidão" dos indígenas

Segundo os relatos colhidos por Maguire, os prisioneiros viviam em "um regime de exceção sem garantias processuais, tipos penais nem sentenças definidas".

Os entrevistados classificaram o regime como "escravidão do índio" e citaram que, além das prisões arbitrárias e torturas, havia roubo das terras. Relataram também que o trabalho escravo ocorria sob ordens de Manoel dos Santos Pinheiro, o 'Capitão Pinheiro', ligado à PM.

Refizemos na pesquisa os mapas dos prédios. As pessoas entravam e ocupavam logo as celas menores. Com o tempo, eles 'graduavam', e a guarda deixava ocupar celas maiores e circular pelo local de maneira menos ostensiva."
Pedro Maguire, em fala ao podcast "Aqui tem Ciência", da UFMG

Essa evolução, conta o pesquisador, "premiava" aqueles que tivessem um "bom comportamento". Segundo Maguire, no presídio em Carmésia, por exemplo, o tamanho era:

  • Cela maior: 4,55 m x 3,3 m
  • Cela intermediária: 3,3 x 2,4 m
  • Cela menor: 2,5 m x 1,55 m

Com os internos obrigados a trabalhar em condições análogas à escravidão, várias mulheres do povo Krenak caíram também na rede das punições e trabalhos sob um regime disciplinar férreo. A tortura, sob a forma de espancamentos cometidos com o intuito de aterrorizar, atingiu várias pessoas do povo Krenak."
Tese de doutorado de Pedro Maguire

Já no reformatório havia uma "série de comportamentos não tipificados, sem nenhum processo legal, muito menos garantias".

Nele foi frequente o uso de celas em condições equivalentes à tortura. Os prisioneiros dependiam, para sua libertação, da avaliação subjetiva dos seus guardas sobre o desempenho em trabalhos forçados."
Tese de doutorado de Pedro Maguire

MPF apurou, Justiça condenou

As cadeias indígenas foram alvo de ação do MPF em Minas Gerais, que denunciou os governos brasileiro e mineiro.

Em setembro de 2021, a juíza federal Anna Cristina Rocha Gonçalves condenou a União e o governo de MG por violações dos direitos humanos e civis do povo Krenak. A decisão previu cerimônias públicas federal e estadual para que reconhecessem o erro —o que ainda não ocorreu.

Imagem emblemática

Um dos fatos que chama a atenção na denúncia do MPF é a solenidade de formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena, realizada em Belo Horizonte em fevereiro de 1970. Lá foi produzida uma das imagens mais emblemáticas da ditadura: o desfile de indígena amarrado em pau de arara (método de tortura) e carregado por militares.

Imagem de indígena Krenak amarrado a um pau-de-arara em desfile em Belo Horizonte. Imagem foi recuperada por Jesco Von Puttmaker em seu filme "Arara" - Reprodução - Reprodução
Indígena Krenak amarrado a um pau de arara em desfile em Belo Horizonte. Imagem foi recuperada por Jesco Von Puttmaker em seu filme "Arara"
Imagem: Reprodução

Comissão da verdade indígena

Segundo o relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade), seis tipos de violações foram praticadas contra os povos indígenas na ditadura militar:

  • Remoções forçadas do território tradicional
  • Usurpação de trabalho indígena e trabalho escravo
  • Prisões
  • Tortura e maus tratos
  • Desagregação social
  • Extermínio

No documento final, a CNV sugere uma nova comissão da verdade indígena para investigar os crimes praticados durante a ditadura. A investigação, porém, nunca foi feita.

Pressão sobre governo Lula

Há uma mobilização para pressionar o governo Lula a criar a comissão da verdade indígena. Em nota técnica, o MPF também se manifestou a favor.

O tema será discutido em audiência pública no dia 25 de abril na Câmara, que deve ouvir violações cometidas durante a ditadura. A proposição é da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG).

Segundo a CNV, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período de investigação de seus trabalhos, mas diz que se trata de uma estimativa, e que mais apurações são necessárias.