Carlos Madeiro

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Jovem presa com doce de maconha responde por tráfico: 'Cruel', diz entidade

A jovem Maria*, de 19 anos, foi presa no último dia 10 de agosto pela polícia do Maranhão. Ela foi denunciada por vender em sua rede social "brisadeiros", doces com chocolate feitos tendo como base a planta da maconha.

Mãe de uma menina de quatro anos, ela foi detida ao ser flagrada entregando a encomenda a um cliente em Imperatriz (MA). Passou 21 dias detida (boa parte deles em São Luís, a 632 km de Imperatriz) e foi enquadrada por tráfico de drogas; se condenada, pode pegar de 5 a 15 anos de cadeia.

Entraram na minha casa e começaram a procurar drogas, mas sempre usei a planta natural sem químicas. E toda a ação ocorreu na frente da minha filha. Fui levada à Delegacia de Narcotráfico e tratada como uma grande traficante.
Maria

A prisão da jovem gerou repercussão entre movimentos de direitos humanos, que classificaram a preventiva e qualificação de tráfico como ato como um de exagero e preconceito.

Os agentes públicos encontraram uma mulher e uma criança numa casa sem bens de valor, sem fogão, sem geladeira e decidiram incriminá-la como traficante como fazem diariamente com a população feminina, pobre e preta das periferias do nosso estado. Avalio como punitivismo ao extremo, em uma atitude perversa e cruel de quem não tem qualquer preocupação com a justiça.
Conceição Amorim, coordenadora do Centro de Direitos Humanos Padre Josimo

A prisão preventiva

Dois dias após ser presa, atendendo a pedido da polícia, a Justiça converteu o flagrante em prisão preventiva por "risco à ordem pública".

A Justiça ainda determinou, na audiência de custódia, a quebra de sigilo telefônico do aparelho celular apreendido.

No relatório, a polícia diz que a prendeu quando ela entregava uma sacola com os doces a um cliente. Relata que foram apreendidos com ela 11 "brisadeiros" e 791 gramas de uma "espécie de manteiga" para preparo dos doces.

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Presídio em Imperatriz (MA), um dos que a jovem ficou durante os 21 dias detida
Presídio em Imperatriz (MA), um dos que a jovem ficou durante os 21 dias detida Imagem: Reprodução/Google Earth

"Não sabia que era ilegal"

Na rede social, Maria vendia abertamente os doces e recebia encomendas. Fazia isso de casa, onde entregava os pedidos. Na descrição da página, explicava como era feito o brisadeiro.

Ela diz que estava vendendo os doces desde maio porque viu pessoas fazendo o mesmo livremente em pontos turísticos da cidade. "Vi que o lucro era bom, comecei a vender também."

Vendia somente por encomenda, e na página havia todas as informações. As pessoas que compravam estão cientes da matéria-prima do produto.
Maria

Preconceito

Maria foi assistida pela Defensoria Pública. No seu pedido de relaxamento de prisão, ela faz críticas à detenção preventiva de uma "jovem, mãe e sem antecedentes criminais."

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Cita, por exemplo, que Maria é apresentada nos autos como desempregada.

Percebe-se como preconceitos e vieses sociais muitas vezes nublam a verdadeira realidade de um indivíduo. Ela, uma jovem negra, é um exemplo desse fenômeno. Embora possa parecer uma informação sem importância, esse rótulo não é apenas incorreto, mas também prejudicial, uma vez que carrega consigo um viés que pode afetar negativamente. Pior ainda, esse rótulo perpetua estereótipos sociais e raciais que muitas vezes discriminam indivíduos de comunidades marginalizadas.
André de Oliveira Almeida, defensor público no pedido revogação da prisão

Ele questiona ainda pontos técnicos, por exemplo, como a impossibilidade de precisar a efetiva quantidade de maconha aprendida, "visto que ela era utilizada apenas como um dos ingredientes para o referido doce."

Ressalte-se que a maconha contida no referido doce não era utilizada como uma forma de esconder, dissimular, facilitar o tráfico ou algo nesse sentido. Pelo contrário, era algo utilizado como ingrediente, como uma espécie de 'tipo de brigadeiro', de modo que essa conduta, por si só, não merece mais reprovabilidade a ponto de se impor a cautelar mais rígida existente.
André de Oliveira Almeida

Para ele, o caso de Maria é um exemplo clássico do que chama de "obra tosca", um termo usado para descrever crimes que são mais facilmente detectáveis e, portanto, mais propensos a serem criminalizados pelo sistema penal.

Ele cita que, na internet, há vários vídeos com títulos 'brisadeiros', sem que haja restrição, atuação policial ou judicial.

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O UOL também fez uma pesquisa e encontrou dezenas de vídeos explicando como são feitos os "brisadeiros".

É evidente que indivíduos que compartilham características sociais e raciais mais privilegiadas parecem gozar de uma certa imunidade, demonstrando como o sistema penal é seletivo e discriminatório. Por exemplo, veja o canal do YouTube, de um homem branco, de forma mais refinada, luxuosa, aprimorada, anunciando normalmente esse mesmo tipo de doce.
André de Oliveira Almeida

Trecho de vídeo citado pela Defensoria mostra homem branco ensinando a fazer 'brisadeiros'
Trecho de vídeo citado pela Defensoria mostra homem branco ensinando a fazer 'brisadeiros' Imagem: Reprodução

Soltura só 21 dias depois

No dia 31 de agosto, acolhendo pedido da Defensoria Pública do Maranhão, Maria foi solta.

A juíza Denise Pedrosa Torres, da Central de Inquéritos e Custódia de Imperatriz, levou em conta que ela tem uma filha de 4 anos, não tem antecedentes criminais e que seria necessário esclarecer a quantidade de drogas em posse da jovem.

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O princípio da proteção integral à primeira infância e as condições pessoais favoráveis da investigada recomendam a substituição da prisão preventiva por medidas cautelares diversas da prisão.
Denise Pedrosa Torres, em decisão de soltura de Maria

Maria deverá comparecer à Justiça a cada dois meses, ficar em casa das 22h às 6h e está proibida de ir a locais que vendam ou consumam bebidas, além de "bocas de fumo" e ambientes semelhantes.

Ao fim, Maria diz que está arrependida.

Eu me arrependo muito por ter ficado tanto tempo longe da minha família. Realmente não sabia que era ilegal, e dá para perceber pelas minhas publicações. Espero responder em liberdade, já aprendi a lição durante esses dias no presídio. Minha filha também precisa de mim. Sou mãe solo, não tenho benefício. Tudo que fiz foi para não deixar faltar pão.
Maria

*O nome foi alterado para preservar a identidade da entrevistada.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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