Alunos trans são indiciados pela PF após chamarem reitor de transfóbico
Dois estudantes trans da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) foram indiciados por calúnia pela PF (Polícia Federal) após falas críticas contra o reitor da instituição, Valdiney Gouveia Veloso, durante reunião no campus em março de 2023.
Encerrado em 15 de julho, o inquérito foi remetido no dia 29 ao MPF (Ministério Público Federal), que pode arquivá-lo ou denunciar os alunos à Justiça.
O indiciamento
O caso que resultou nos dois estudantes indiciados veio de uma confusão durante reunião do Consuni no dia 27 de março de 2023. Na reunião anterior, dia 22, o tema de debate no órgão foi um dossiê com denúncias sobre as ações da gestão do reitor Valdiney Gouveia —que nunca chegou a ir adiante.
No encontro, o reitor usou o pronome feminino para chamar um aluno trans líder do movimento estudantil na instituição. A fala gerou revolta de alguns presentes, já que não teria sido a primeira vez que ele trocaria o pronome.
Após a fala, estudantes começaram a chamar o reitor de transfóbico. Valdiney decidiu ir à PF fazer uma denúncia contra os dois alunos e levou a gravação da reunião para análise.
A coluna tentou ver a reunião; porém, na conta do YouTube da UFPB, a reunião daquela data não consta lista de vídeos publicados —embora várias outras reuniões do Consuni sigam no canal.
O reitor alegou à PF que não soube identificar o sexo do estudante no momento e que, por isso, teria errado o pronome.
A PF concluiu que o fato de o reitor ter trocado o pronome não se configura crime de transfobia e cita ainda que teria havido uma tentativa de ele se retratar no evento.
Como conclusão, a PF afirma que os alunos citados "imputaram falsamente" ao reitor o termo de transfóbico, e por isso teriam cometido crime de calúnia (que pode dar pena de detenção de seis meses a dois anos e multa).
Nomeado por Bolsonaro
O reitor tem acionado com frequência a PF para denunciar supostos crimes contra a sua honra. Desde 2022, pelo menos sete inquéritos contra alunos e professores da instituição que o criticam foram abertos pela corporação. Seis estão em andamento.
Desde o início de sua gestão, Valdiney tem enfrentado resistência, já que a UFPB foi uma das 20 universidades federais em que o ex-presidente Jair Bolsonaro, ao nomear o reitor, ignorou o primeiro colocado na lista tríplice das consultas internas. A prática é criticada nas universidades, mas não é ilegal.
Valdiney foi nomeado em novembro de 2020 para um mandato de quatro anos. Ele ficou em terceiro lugar na consulta pública a alunos, servidores e professores e, mesmo sem nenhum voto no Consuni (Conselho Superior Universitário), constou na lista tríplice e foi escolhido.
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Quero receberHá perseguição, dizem professores
Segundo o professor Daniel de Campos Antiquera, que responde a dois inquéritos, o indiciamento dos alunos é "absurdo", já que eles "responderam por se sentirem violentados". "Isso é incompatível com qualquer noção de respeito aos direitos humanos", alega.
Segundo o professor, que estava no dia da reunião do Consuni, há um "histórico de desrespeitos à identidade de gênero" na gestão atual. "Isso não se restringe a uma fala em uma reunião."
Eu mesmo já vi situações semelhantes em outras reuniões, de trocarem o pronome de gênero. A própria estudante já foi impedida de utilizar o banheiro feminino, ainda em 2022 --e registrou boletim de ocorrência por isso.
Daniel Antiquera
Um fato que o professor chama a atenção é que os estudantes indiciados pelo reitor não foram os únicos a acusar atos de transfobia.
Eles foram os únicos a serem criminalizados porque são lideranças estudantis na oposição a esta gestão. Neste processo de perseguição política, as pessoas acusadas de crime são escolhidas seletivamente, entre as centenas que se manifestam.
Outro professor que também responde a dois inquéritos é Márcio Bernardino da Silva, que afirma que as denúncias de estudantes levadas pelo reitor são especialmente graves porque "pega um setor mais vulnerável." "É um método que ele tem usado bastante para enfrentar os movimentos dentro da universidade."
Para denunciar o que classificam de perseguição política, ele e o professor Daniel enviaram uma denúncia ao MEC (Ministério da Educação) em abril deste ano. Procurada, a pasta disse que o caso ainda está em análise.
Márcio da Silva afirma que prestou dois depoimentos à PF já, um deles em Brasília, já que ele também é alvo de investigação por falar durante uma audiência pública na Câmara.
Esse é um inquérito que considero especial porque, além da materialidade de crime, era um espaço público, um lugar feito para se falar. Eu estava em uma atividade sindical, representando um sindicato.
Márcio da Silva
No caso da apuração que ocorre na PF em João Pessoa, a investigação é sobre a manifestação realizada durante uma aula magna em fevereiro de 2023 e inclui mais dois professores e uma aluna. "Sequer falei, só estava presente", completa.
Outro lado: a coluna tentou, na terça e quarta-feira, contato com a reitoria da UFPB, para que se manifestasse sobre os inquéritos e sobre as afirmações de que se tratam de uma perseguição a pessoas que criticam a gestão, mas não obteve resposta. O espaço segue aberto para manifestação.
O MPF afirmou que acompanha os inquéritos que estão em andamento, mas que não comenta.
Sobre o caso já com indiciamentos, explica que está analisando o relatório final do inquérito para decidir se vai se posicionar "pelo arquivamento, pela denúncia (ação penal) ou pela propositura de um acordo de não persecução penal".
A PF na Paraíba informou que não se pronuncia sobre investigações em curso.
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