Topo

Chico Alves

"Atira na bunda dele!" é o novo refrão da selvageria nacional

PM armado ameaça o colega no Centro de São Paulo - Reprodução de vídeo
PM armado ameaça o colega no Centro de São Paulo Imagem: Reprodução de vídeo

Colunista do UOL

05/12/2020 15h36

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A Rua Santa Ifigênia, no Centro de São Paulo, parecia um formigueiro no início da tarde de sexta-feira. O movimento ali é sempre intenso, mas é ainda maior em dezembro, quando os compradores vão ao comércio popular para garimpar presentes de Natal mais em conta. A especialidade das lojas daquela região são os aparelhos eletrônicos de marcas desconhecidas, com preços acessíveis.

Quem ontem se espremia nas calçadas estreitas, driblando os caminhões que descarregavam mercadorias e outros obstáculos, teve a atenção desviada para um tumulto na esquina da Santa Ifigênia com Timbiras.

Cercados por dezenas de curiosos, dois PMs discutiam. Exaltado, o soldado Fábio do Nascimento encostava a pistola no rosto do cabo Márcio Simão de Oliveira Matias.

A cena insólita tinha evidente potencial para se transformar em tragédia.

Porém, em vez do temor pela vida do homem que estava sob ameaça (e pela própria integridade), os transeuntes reagiram com indiferença e escárnio.

Alguns não dedicaram aos dois PMs mais que um rápido olhar antes de seguir caminho lentamente, carregando suas sacolas, como se nada estivesse acontecendo.

Um número considerável de pedestres resolveu agir como plateia. Não se viu nenhuma tentativa de tentar demover o policial armado que ameaçava o colega. Pelo contrário.

Ás gargalhadas, o grupo em volta gritava "Pega ele!", "Mata ele!", "Atira na bunda dele!".

Houve quem expressasse aos urros a excitação com a pendenga. Como costuma acontecer em momentos assim, incontáveis celulares registraram a desavença e a reação dos presentes.

A discussão entre os dois PMs terminou com o cabo fazendo uma tentativa inútil e perigosa de desarmar o soldado, que finalmente se acalmou.

Restou a perplexidade pelo modo como os frequentadores da Santa Ifigênia encararam o episódio.

Psicólogos, sociólogos, antropólogos poderiam ajudar a refletir: o que leva os brasileiros a naturalizarem dessa forma a violência?

Há muitas pistas para essa resposta. Ou melhor: há muitas respostas. Mas é preciso entender como chegamos ao nível de insensibilidade que leva desconhecidos a incentivar o assassinato de alguém ou, no mínimo, encarar uma ameaça de homicídio como fato divertido.

Entre nós, a violência tornou-se uma forma de linguagem. Deve-se resistir à saída fácil de culpar o bolsonarismo por essa barbárie cotidiana. Antes de Jair Bolsonaro ganhar destaque nacional, os brasileiros já haviam demonstrado fartamente sua intimidade com a selvageria.
Talvez até seja possível concluir que o atual presidente não é o causador, mas o resultado do embrutecimento nacional.

Nesse tipo de ambiente, encarar sem a devida revolta a ocorrência de 170 mil mortes na pandemia, muitas delas evitáveis, faz todo o sentido.

A plateia que berrava e ria enquanto um PM quase matou o outro simplesmente por causa do atraso no retorno do almoço é uma amostra de uma fatia do Brasil que não é nada desprezível. É preciso entendê-la, se quisermos reverter esse quadro.

Os que estiverem dispostos a essa tarefa devem dedicar também alguma atenção às redes sociais, onde, em muitos perfis, verificou-se o mesmo escárnio e indiferença diante da vida demonstrado pelos transeuntes da Santa Ifigênia. A frase "Atira na bunda dele!" chegou ao topo dos trend topics do Twitter.

Também nas redes sociais, onde o perfil socioeconômico é bastante diverso dos compradores do comércio popular de São Paulo, a ameaça de morte virou piada.