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Bolsonaro usa a mentira como instrumento de governo
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Não é normal um presidente ser chamado de mentiroso pela imprensa com tanta frequência como ocorre com Jair Bolsonaro. Os ocupantes do Palácio do Planalto sempre desfrutaram da deferência que o cargo inspira. Com Bolsonaro, no entanto, esse protocolo foi quebrado.
A situação não é resultado de má vontade dos jornalistas com o presidente. Na verdade, os veículos de comunicação até foram tolerantes demais com alguém que desde a campanha eleitoral de 2018 apoia seu discurso em fake news.
Somente no segundo ano de mandato, depois da repetição diária de invencionices de todos os tipos, os sites, jornais e emissoras de TV passaram a usar a palavra "mentira" para classificar as falas de Bolsonaro sem correspondência na realidade. Demorou.
Não que o atual presidente tenha sido o primeiro a falar mentiras. Como se sabe, a frágil condição humana nos faz vez ou outra criar alguma ficção para justificar fraquezas ou burradas. Pode acontecer com qualquer um.
É lícito acreditar que outros presidentes também mentiram, de forma mais ou menos aparente. Mas nenhum deles fez uso de lorotas com tanta insistência e despudor. Nesse sentido, foi o presidente quem quebrou o protocolo.
Mais que isso: a mentira é um instrumento fundamental no governo Bolsonaro. É tudo muito evidente, nem é preciso recorrer a polígrafos.
Exemplos não faltam.
Em março de 2020, durante viagem aos Estados Unidos, Bolsonaro denunciou uma suposta fraude nas eleições de 2018. Questionou a confiabilidade das urnas eletrônicas brasileiras sem mostrar nenhuma prova.
Nos meses seguintes, repetiu a "denúncia" de fraude várias vezes, sem apresentar qualquer elemento que a comprovasse. Comprou briga com o ministro Luis Roberto Barroso, mandou a Polícia Federal coletar processos sobre fraudes (uma demonstração clara de que a denúncia era leviana) e chegou ao ápice em uma live anunciada como decisiva em que admitiu o que todos já sabiam: não tinha mesmo provas.
Como não chamar esse ataque gravíssimo do presidente ao processo eleitoral pelo nome merecido? Era uma deslavada mentira.
Outro embuste bastante danoso, especialmente em meio à pandemia que matou mais de 600 mil brasileiros, foi repetido por Bolsonaro na quinta-feira passada: "Quem fez um tratamento precoce [contra covid-19] sequer foi hospitalizado". Nem mesmo os senadores cloroquiners chegaram a um ponto tal de devaneio.
Se ainda houver dúvida sobre a índole do presidente, aí vai uma sequência de cascatas presidenciais coletadas nos últimos três meses:
— "A OMS diz que não é para vacinar ninguém (de 12 a 17 anos)".
A imprensa e os especialistas alertaram que a Organização Mundial de Saúde nunca fez essa orientação, mas Bolsonaro continuou repetindo a informação falsa.
— "Por ocasião da pandemia, pouca coisa sobrou para o governo federal a não ser mandar recursos para estados e municípios e também suprir a renda de uma parte considerável da população".
Essa foi uma das lorotas mais repetidas desde o início da crise sanitária. Imprensa e Supremo Tribunal Federal esclareceram à exaustão que a decisão da corte foi de manter as prerrogativas dos três níveis administrativos: federal, estadual e municipal. Bolsonaro queria interferir em decisões regionais. Ao ser impedido, passou divulgar essa versão mentirosa à sua claque.
— "Nós sempre fomos contra a erotização de criança em sala de aula, aquele tal do kit gay, descoberto em 2010, lá atrás".
A declaração parece antiga, mas não é: foi feita no dia 9 de setembro. Ou seja, três anos após a invenção que Bolsonaro divulgou na campanha eleitoral, ele continua a mentir. Essa talvez seja uma das lendas bolsonaristas mais desmentidas por jornalistas e autoridades. O presidente não está nem aí e continua a recitar o refrão do kit gay.
—- "(Referindo-se a Luis Roberto Barroso) Ministro esse que defende a redução da maioridade para estupro de vulnerável, ou seja, a pedofilia é o que ele defende".
A afirmação é tão absurda que nem é preciso ir a detalhes.
A institucionalidade não é uma via de mão única. O presidente deve ser respeitado na medida em que se dê ao respeito. Disparar fábulas sem conexão com os fatos não é exatamente o que se espera de um chefe de Estado.
A imprensa não poderia minimizar esse fato. Chamar o presidente de mentiroso nada mais é que usar o termo mais adequado para a circunstância atual. Isso é objetividade, quer os bolsonaristas gostem ou não.
Ou para agradar um determinado grupo político os jornalistas teriam que fingir que a barbárie que se desenrola à nossa frente é normal e deveriam buscar vocábulo mais gentil para amenizá-la?
Por fim, uma constatação simples: se o jornalismo não puder identificar claramente a mentira, jamais conseguirá se aproximar daquilo que tanto se propõe a buscar: a verdade.
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