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Chico Alves

REPORTAGEM

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Após atentados, defensora dos direitos trans vai sair do Brasil

Fernanda Falcão, militante pelos direitos das pessoas trans - Divulgação
Fernanda Falcão, militante pelos direitos das pessoas trans Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

10/03/2022 04h00

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Vítimas da transfobia e da falta de políticas públicas que as proteja, as mulheres transgêneras brasileiras vão perder uma de suas grandes aliadas dentro de poucos dias. A pernambucana Fernanda Falcão, 30 anos, mulher travesti que é criadora e coordenadora da Rede Nacional de Mulheres Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids (RNTTHT), vai viajar para a Espanha. Não decola por opção, mas para preservar a própria segurança.

."Com esse governo, as pessoas agora têm coragem de falar que têm ódio de algumas coisas, antes existia um certo pudor", desabafou Fernanda à coluna.

As agressões de cunho transfóbico se tornaram mais frequentes e mais violentas. Fernanda sentiu isso na pele.

Em junho do ano passado, depois de integrar uma equipe que tentou socorrer vítimas de maus tratos em um prostíbulo da cidade de Abreu e Lima, na região metropolitana do Recife, ela sofreu represálias. Á noite, quando estava em casa, ouviu chutes na porta e gritos do lado de fora. Eram homens com armas na mão, dizendo que iam matá-la. Fernanda gritou, chamou a atenção dos vizinhos e os estranhos fugiram.

Cinco meses depois, um novo atentado. "Tentaram me colocar dentro de um carro, arrancaram meu cabelo com a mão. Tive que pular em um rio para escapar", recorda Fernanda. Pior: pediu ajuda da polícia para escapar e o socorro lhe foi negado. Além disso, teve a casa metralhada.

Chegou facilmente à conclusão de que para continuar viva teria que sair do país. Fez um crowdfunding para cobrir as despesas e está de malas prontas.

"É muito difícil sair daqui e perder essas pessoas que são referenciais para mim", diz. Ela se refere às companheiras da RNTTHT , que criou em 2016, e às mulheres trans que são atendidas pelo projeto.

Ela espera poder voltar. "Estamos falando de nossas dificuldades e desafios, mas quem vivencia uma vida de luta também tem suas conquistas. Sempre há esperança".

A seguir, trechos da entrevista com Fernanda Falcão:


Trabalho social

Criamos em 2106 a Rede Nacional de Mulheres Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HIV/Aids. Percebi que isso estava me fazendo feliz, me faz suprir coisas que são essenciais, me faz querer permanecer viva. Começamos a fazer trabalho dentro do sistema prisional, com a readequação de vínculos familiares, a questão da prevenção do HIV/Aids, a prevenção da tortura.

Além disso, contribuí com o governo estadual como funcionária pública, com políticas sociais dentro das unidades prisionais e secretarias de Justiça e Saúde, sempre articulando as meninas para que pudessem ter espaço de fala.

Ameaças constantes

As ameaças acontecem desde sempre. Quando íamos para a pista, os motoristas queriam passar por cima. Fomos agredidas em redes sociais, quando alguma das pessoas que atendemos aparecia em alguma reportagem já estigmatizava por ter Aids. Jogam pedras. É algo costumeiro.

É a primeira vez que falo de uma agressão que acontece comigo. Porque considero que tive muitos privilégios e minha população está pedindo tão pouco. Várias outras morreram para que eu tivesse oportunidade de estar aqui. Pode ser que essa seja minha vez.

Guerra cotidiana

A gente está vivendo uma guerra aqui mesmo. Não tem explosão, bombardeio, mas é uma guerra silenciosa. E não é de agora que se extermina a população de travestis e transexuais, não é de agora que a gente é vítima de HIV, expulsão de casa, da escola. É desde sempre.

Os meios de comunicação nos tratavam como palhaças, só pra rir. Hoje estamos sendo mostradas com seriedade, hoje se dá valor à vida, mas não quero que dê valor somente à minha vida não, quero que se dê valor a todas as outras. Várias militantes estão passando pela mesma coisa.

Trabalho social como referência

Tudo isso que eu construí, algo que é meu, que eu dou muita importância, porque é o que me faz permanecer viva. Essas ameaças vão me tirar uma coisa que é a minha base, que é estar nos espaços onde eu me sinto acolhida. Mas a última vez que fizeram atentado contra mim arrancaram meu cabelo com a mão, tentaram me colocar dentro de um carro, tive que pular no rio para escapar. Metralharam a minha casa.

As violências pioraram nos últimos tempos, principalmente nos últimos dois anos. Antes as pessoas tinham vergonha de falar do seu ódio. Hoje, as pessoas falam com muita tranquilidade do seu ódio, é algo muito característico. A gente vê pelas mortes das meninas e meninos, estupros que acontecem dentro de casa, como se fosse um corretivo.

A gente vê claramente que é algo que vem depois dessa nova gestão federal. O nosso Brasil está sendo gerido por pessoas que destilam e autorizam o ódio de forma permanente. Isso é algo que vai demorar a ser mudado. A política de Aids, que levou 30 anos para ser construída, foi destruída em uma canetada. Estamos vulneráveis.

Ameaças permanentes

Não existe mais garantia de vida. É difícil uma travesti sair na rua, de dia, pode ser agredida a qualquer momento. Imagine uma pessoa que junta a isso uma fala política? Que dialoga com outras pessoas que se acham donas da concepção do saber.

A instituição continua, a instituição não é Fernanda. Inúmeras pessoas foram formadas enquanto a gente fez esse trabalho de formiguinha. Temos pessoas que são multiplicadoras.

Apesar de tudo, esperança


Sempre tem esperança. Estamos falando de nossas dificuldades e desafios, mas quem vivencia uma vida de luta também tem suas conquistas. Não é o suficiente, mas a política pública para as pessoas trans é embrionária, um diálogo que precisamos continuar por muito tempo.

O preconceito está dentro da nossa cultura e acaba vitimando muitas pessoas. Mas as saídas estão sendo construídas todos os dias, permanecer viva é a primeira delas. As pessoas têm que usar da sua hetero-cyz-normatividade para ajudar os diferentes.

Sonhos e trabalho social

Não realizei meu sonho, que é ser aquela mulher padrão que cuida de uma família. Se eu não consegui realizar isso, eu vejo realizado esse sonho em muitas outras meninas. Pode ser que eu viva essa experiência junto com essas pessoas. Por isso, é muito difícil sair daqui e perder essas pessoas que são referenciais para mim.

Para fazer esse trabalho, a pessoa vira uma espécie de mira. Já levei tiro, já tive minha casa metralhada, porque as pessoas não gostam de referenciar direitos para quem está na marginalidade, na base da pirâmide.