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Chico Alves

REPORTAGEM

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Chama atenção a sintonia de Kassio com o governo Bolsonaro, diz pesquisador

Ministro Kassio Nunes Marques, do STF - Carlos Moura/SCO/STF
Ministro Kassio Nunes Marques, do STF Imagem: Carlos Moura/SCO/STF

Colunista do UOL

06/06/2022 11h40

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É normal que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) volta e meia tome decisões que vão ao encontro das convicções do presidente que o nomeou. Afinal, ninguém indica para o cargo um adversário ideológico ou político. Mas quando esse ministro concorda com o chefe do Executivo com muita frequência em assuntos dos mais diversos e por causa disso vai contra seus pares em casos fundamentais, há algo a ser observado com cuidado.

Isso é o que acontece com as recentes decisões do ministro Kássio Nunes Marques. "Chama atenção a sintonia de Nunes Marques com o governo Bolsonaro", diz o paulista Thomaz Pereira, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas do Rio, estudioso do STF e de cortes similares de outros países.

Nessa entrevista à coluna, ele aborda a controversa decisão do primeiro ministro nomeado por Jair Bolsonaro, que restituiu mandato aos deputados bolsonaristas Valdevan Noventa (PL-SE) e Fernando Francischini (União-PR), antes cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por divulgar fake news. A sentença era tida como um dos parâmetros para punição de notícias mentirosas na campanha deste ano.

"Por mais que formalmente possa ser feito, digamos que exigiria de quem toma uma decisão como essa muita certeza, muito respaldo, muita clareza de que ele está apoiado pela instituição", diz Pereira.

UOL - Com base nas últimas decisões do ministro Kassio Nunes Marques, podemos dizer que ele é submisso ao governo Bolsonaro?

Thomaz Pereira - Tem muitos estudos que tentam verificar empiricamente qual é o grau de influência de quem nomeia, no caso o presidente da República, sobre um ministro. Uma coisa muito difícil de separar é o que é influência, a capacidade de movimentar o ministro, e o que é sintonia, quando se nomeia um ministro que naturalmente concorda com o presidente em diversos temas, então não precisa guiar.

É preciso levar em conta a variedade de processos que um tribunal julga. Tem algumas questões que você consegue imaginar que são em alguma medida ideológicas. Seja no sentido político amplo, seja no sentido jurídico específico. Você pode ter um ministro que é mais garantista ou menos garantista. E o presidente nomeia, talvez esteja baseado nos seus próprios interesses, nas suas crenças ou nos seus próprios benefícios, por imaginar que um ministro garantista pode ser melhor, ou um ministro mais linha dura nesse sentido, menos garantista, pode ser melhor.

Essas coisas vão acontecer, casos vão surgir e esse ministro vai se comportar, imagina-se, de acordo aquilo que você já sabia que ele era. Ou então em temas de costumes. Nesse caso, o presidente nomeia um ministro que é mais comprometido com valores de liberdade ou de igualdade ou de direitos de minorias. Então ele é nomeado porque o presidente imagina que vai sinceramente se comportar daquela maneira no futuro.

O que eu acho que é diferente, que a gente tem que prestar atenção, é quando ele varia de acordo com o interesse. Uma coisa é um ministro que é garantista com todo mundo, inclusive favorecendo quem o nomeou. Outra coisa é um ministro que às vezes é garantista com uns, não é com outros. E daí você tenta entender se o que está movendo ele não é esse comprometimento com valores próprios.

As decisões de Nunes Marques têm essa marca?

O que tem chamado atenção no Nunes Marques de maneira geral é que tem sido uma sintonia (com o presidente) em diversos temas. E temas que não são necessariamente relacionados. Por exemplo, pensando em duas liminares mais polêmicas e mais complicadas que Nunes Marques deu individualmente desde que entrou Supremo, as duas em perfeita sintonia com o governo Bolsonaro e, digamos, em confronto com seus próprios colegas do STF, em temas que não são relacionados.

A primeira, a liminar que ele concedeu liberando os cultos na Páscoa durante a pandemia, independentemente das restrições estavam sendo colocadas em certas cidades . Ele fez isso individualmente, sem uma base no precedente do Supremo, na verdade contra um posicionamento do Supremo, que vinha sendo no sentido de manter essas restrições. E ele fez isso na véspera, de uma maneira que não dava tempo de o colegiado derrubar a liminar antes da Páscoa.

O ministro fez algo que estava em sintonia com o discurso do presidente Bolsonaro, em sintonia com uma parte importante da base que o apoia politicamente e contrário ao comportamento que vinha sendo praticado pelo tribunal. Em seguida, quando o Supremo pautou no colegiado pra tomar uma decisão, a gente viu as posturas dos ministros rejeitando de maneira enfática essa decisão do ministro Nunes Marques.

Agora vamos pensar no que aconteceu na semana passada. Não é exatamente o mesmo tema. É bem diferente a gente discutir uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral em que o tema envolve fake news, algo com que o TSE está comprometido de maneira enfática, que tem a ver com a defesa do processo eleitoral, contra o discurso político que tenta deslegitimar ou gerar dúvidas sobre as urnas eletrônicas, nosso processo eletrônico.

Nesse tema (anulação da cassação de deputados que divulgaram fake news), que tem total aderência com o discurso do governo Bolsonaro e da sua base, Nunes Marques de novo dá decisão contra o entendimento do próprio tribunal.

Thomaz Pereira, professor de Direito Constitucional - Divulgação - Divulgação
Thomaz Pereira, professor de Direito Constitucional
Imagem: Divulgação

Formalmente, Nunes Marques pode questionar uma decisão colegiada do TSE. O que chama mais atenção nesse caso?

Sim, ele pode dar uma liminar, não é a primeira vez. Mas o que chama atenção é que esse não era um caso qualquer. Nesse processo todo mundo entende o valor simbólico, a relevância, a mensagem que esse caso tenta passar para as eleições futuras. Está num contexto de luta do TSE e do Supremo Tribunal Federal em defesa própria e em defesa do processo eleitoral.

Nesse contexto é que Nunes Marques, sozinho, dá uma liminar contra o TSE. Por mais que formalmente possa ser feito, digamos que exigiria de quem toma uma decisão como essa muita certeza, muito respaldo, muita clareza de que ele está apoiado pela instituição.

Por decisões como essas podemos dizer que Nunes Marques obedece ao governo federal?

Há outro voto em uma decisão colegiada que chamou muita atenção, dessa vez não foi uma liminar, quando estava sendo discutida a possibilidade de reeleição de o presidente do Senado e o presidente da Câmara dos Deputados, na época David Alcolumbre e Rodrigo Maia.

Teve um racha no Supremo que não foi trivial, o ministro Gilmar Mendes liderou, digamos, um posicionamento heterodoxo que tentava legitimar a possibilidade de reeleição de ambos, que claramente poderia ser profundamente questionado do ponto de vista do nosso direito constitucional. O ministro Nunes Marques na época foi um voto que permitia a reeleição do Alcolumbre no Senado e não do Rodrigo Maia na Câmara. Era um posicionamento exatamente em sintonia com os interesses do governo naquele momento. Chama atenção decisões como essas. A posição, digamos, intermediária do Nunes Marques era exatamente igual ao interesse de Bolsonaro naquele momento.

O posicionamento específico dele tem uma sintonia muito perfeita com os interesses do governo federal. Agora, se isso é sincero ou não... Não estou acusando ele de insinceridade, mas chama a atenção que exista essa sintonia em casos relevantes.

Tem também o julgamento de Daniel Silveira, em que Nunes Marques foi o único a absolver o deputado.

Sim. Ele foi solitariamente contra os colegas e de novo era um caso decisivo, não era um caso trivial. Claro que você pode ter ministros que em processos penais diferentes votam solitariamente e são voto vencido, mas no caso dele isso tem acontecido diversas vezes em sintonia com os interesses do governo e fora de sintonia com a própria instituição, em casos que são relevantes para a defesa do próprio tribunal.

Então isso vale para a questão da pandemia. Isso vale para questão de ataques ao processo eleitoral. Também nesse caso do Silveira, em que houve ataques aos próprios ministros individualmente.

Essa é uma ação em que o tribunal está tentando deixar claro que numa democracia existem limites para o discurso político, para os ataques que podem ser feitos a pessoas ou instituições, e o ministro Nunes Marques não está em sintonia com isso.

Quando uma Suprema Corte tem um ministro aliado do governo, qual é o mal que isso traz para a prática do Judiciário e para a democracia?

A questão não é você ter um ministro que está em sintonia ideológica com o governo. Parte disso está previsto no processo natural, de nomeações políticas. A grande defesa contra arroubos como esse é a colegialidade.

Quando Nunes Marques é apenas um voto em onze, a gente pode até discutir os efeitos negativos ou positivos de ter esse voto vencido ali no meio. Mas os efeitos práticos dessa sintonia são nulos. Então chama atenção o ministro estar disposto a, mesmo sem ter efeitos práticos, marcar aquela posição.