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Reação de servidores públicos conteve governo Bolsonaro em vários setores
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A atuação dos funcionários da Receita Federal que flagraram, no Aeroporto de Guarulhos (SP), a entrada, em outubro de 2021, de um kit de joias não declarado, ofertado pelo príncipe da Arábia Saudita a Jair Bolsonaro (PL), esteve no centro das atenções nos últimos dias.
Também ganhou destaque a firmeza do servidor que, em novembro de 2022, não cedeu às tentativas de um emissário da Presidência da República que tentou liberar o "presente" —no valor de R$ 16 milhões— de forma totalmente irregular.
Os dois momentos, registrados em vídeo, representam um dos vários episódios em que funcionários públicos federais resistiram à pressão do governo Bolsonaro para que agissem fora das regras.
"Os servidores adquirem estabilidade justamente para cumprir a lei e nesse caso [das joias] isso teve de ser feito a despeito de algumas pessoas bastante poderosas", admitiu à coluna Mauro Silva, presidente da Unafisco Nacional (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil).
Para Silva, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro foi o período em que houve as tentativas mais ousadas de interferência no trabalho da Receita. "Talvez por essa confusão entre o poder civil e o poder militar que o governo anterior fazia. Havia aquela ideia de que o comandante manda e todos devem obedecer, quando na verdade nossa regra maior é a lei", analisa Silva, em referência indireta à fala do ex-ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que ao lado do então presidente afirmou que "um manda e o outro obedece".
Esse nível inédito de interferência —muitas vezes ilegal— foi sentido em vários setores do serviço público, nos últimos quatro anos. Nos mais diversos órgãos, houve tentativas de se obstruir fiscalizações, liberar ações ilegais, desvirtuar protocolos por motivos ideológicos, dificultar práticas científicas e outros tipos de irregularidades.
Um dos casos mais rumorosos foi a intromissão de representantes bolsonaristas nos métodos de escolha de questões para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que é responsabilidade do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Depois de criticar repetidamente o teor "esquerdista" do exame, Bolsonaro esteve perto de consumar uma mudança radical no vestibular, quando Danilo Dupas esteve à frente do instituto.
"Foram colocadas pessoas no Inep que pretendiam censurar os itens da prova, queriam impedir, por exemplo, que fosse mencionado o golpe de 64", conta o presidente da Associação de Servidores do Inep, Alexandre Retamal. "Formaram uma comissão para analisar todas as questões do Enem para ter a certeza que não cairia nada com o que eles não estivessem de acordo", conta.
Um dos momentos mais tensos foi quando a tal comissão tentou ter acesso à prova do Enem antes do vestibular. "Isso não pode acontecer. Houve um episódio crítico, com agentes da Polícia Federal entrando na sala segura do Inep", recorda Retamal.
Diante de tantas ações fora do protocolo, a associação denunciou que o Enem estava em risco e 39 servidores entregaram os cargos comissionados. "Esse movimento alertou a sociedade, o Congresso nos defendeu e a sociedade se mobilizou. Até que Dupas acabou saindo", conta o representante dos funcionários.
Apesar de salvar o Enem, o movimento dos servidores não conseguiu impedir outros prejuízos. O cálculo do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) foi paralisado e o Saeb (Sistema de Avaliação de Educação Básica) funcionou precariamente, prejudicando a base de dados para o setor.
"O governo Bolsonaro colocou em risco a própria elaboração, execução e monitoramento das políticas públicas educacionais no Brasil e as consequências disso podem durar décadas", critica Retamal. "Foi a pior gestão em Educação de todos os tempos".
Danilo Dupas rebate, dizendo que o "levante" foi de poucos servidores e sem qualquer reclamação prévia da associação dos funcionários "nos canais institucionais". O ex-presidente do Inep lembra que prestou esclarecimentos na Comissão de Educação da Câmara e na Comissão Senado do Futuro, em novembro. "Recebi apoio de muitos servidores para continuar na liderança da autarquia. Minha saída, após um ano e seis meses, foi a pedido por questões pessoais", afirma Dupas.
Ele diz que as aplicações do Enem 2021 e 2022 "ocorreram dentro do planejado e sem intercorrências, principalmente quanto as questões das provas". "O que mostra a inexistência de comissão paralela e qualquer interferência da Polícia Federal", argumenta. Dupas diz ainda que identificou "fragilidades na autarquia", entre as quais gratificação irregular para servidores, falta de licitação para aplicação do Enem e indícios de inscrições infladas no Enem. Esses temas, segundo ele, estão sob análise dos órgãos de controle.
Outra área estratégica colocada à prova, especialmente por causa da pandemia de covid-19, foi a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Negacionista, Bolsonaro tentou de todas as formas atrapalhar o trabalho da agência. Em janeiro do ano passado, chegou a colocar em dúvida a honestidade dos profissionais da Anvisa por terem aprovado a vacinação infantil contra a covid.
O diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, cobrou retratação do presidente. Por causa desse e de outros ataques, os seguidores de Bolsonaro fizeram dos diretores da agência alvos preferenciais de ofensas e ameaças.
Apesar da pressão, o trabalho da Vigilância Sanitária foi feito dentro das normas profissionais. "A resistência dos funcionários da Anvisa foi fundamental, fizeram documentos de protesto, responderam à altura", lembra o sanitarista Gonçalo Vecina, um dos fundadores da agência. "O fato de ter diretores estáveis, com mandatos que não podem ser interrompidos, foi fundamental para essa resistência", destaca.
Outra trincheira da área de Saúde foi a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). O ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, destaca o papel da instituição, em meio ao negacionismo dominante do governo Bolsonaro.
"A Fiocruz se portou com grande competência e autonomia na defesa da saúde pública", destaca Temporão. "Não só na produção de vacinas, mas também na estruturação de modelos de vigilância epidemiológica, instituição de parcerias com a sociedade no enfrentamento da pandemia e criação do observatório que levantou informações fundamentais para pesquisa".
No Ministério da Saúde, ganhou destaque na CPI da Covid o caso do funcionário do Ministério da Saúde Luis Ricardo Fernandes Miranda, que resistiu a pressões para acelerar a assinatura da nota fiscal de compra das vacinas Covaxin, no valor de R$ 1,6 bilhão, que continha várias irregularidades.
O funcionário denunciou o caso ao irmão, o ex-deputado Luis Miranda, que reclamou com Bolsonaro. De nada adiantou. O secretário-executivo do ministro da Saúde, que é funcionário do ministro, e todos os chefes de Luis Ricardo continuaram tentando fazer com que ele desse andamento à nota fiscal.
O caso foi levado à CPI da Covid e ganhou dimensão de escândalo. A compra das vacinas não foi consumada. Depois de receber muitas ameaças, Luis Ricardo se licenciou e passou uma temporada nos Estados Unidos.
"A coisa chegou a ponto de ele receber ligação do dono da empresa em casa, na noite de uma sexta-feira, cobrando que a compra das vacinas pelo governo fosse destravada", destaca o ex-deputado Luis Miranda. "A pressão exercida sobre os funcionários da Receita foi parecida com a que meu irmão sofreu e ele também não cedeu".
Mesmo em áreas que tiveram cargos de direção aparelhados pelo governo, como a Polícia Federal, houve focos de reação a interferências indevidas. Um dos que resistiram bastante foi o delegado Alexandre Saraiva, que, à frente da superintendência do Amazonas, desbaratou um esquema milionário de contrabando de madeira proibida da Amazônia.
Depois de enviar ao STF (Supremo Tribunal Federal), em maio de 2021, notícia-crime em que acusa o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o ex-senador Telmário Mota de colaboração com os contrabandistas, Saraiva acabou sendo transferido da superintendência do Amazonas para uma delegacia de Volta Redonda (RJ).
O delegado conta que as interferências aconteciam de duas formas: parlamentares foram ao então ministro da Justiça, Sergio Moro, e ao diretor-geral para reclamar do seu trabalho. "Formalizaram por meio de ofício e pediram instauração de procedimentos disciplinares, o que aconteceu. Como o expediente não funcionou e a investigação continuou, Ricardo Salles foi ao local da apreensão, se reuniu com os madeireiros e disse que ia liberar tudo", relata. "Ficava o tempo todo em estado de alerta", diz.
"Tenho 20 anos de polícia e nunca antes desse governo recebi qualquer tipo de pressão, ligação de superior hierárquico para fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.", lamenta Saraiva. "Bolsonaro criou um precedente perigosíssimo", afirma.
O presidente da Unafisco destaca que a resistência dos funcionários públicos a assédios desse tipo só é possível por causa da estabilidade na função. "Apesar do estilo autoritário do governo anterior no trato com o servidor público, isso permitiu que os funcionários reagissem a pressões ou às ordens ilegais de algum superior ou de algum político. Esse expediente existe justamente para garantir que a lei seja cumprida", acredita Mauro Silva
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