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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Genocídio brasileiro será o principal legado do bolsonarismo

5.abr.2021 - Enterros noturnos no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, devido ao número elevado de mortes pela covid - VINCENT BOSSON/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO
5.abr.2021 - Enterros noturnos no Cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, devido ao número elevado de mortes pela covid Imagem: VINCENT BOSSON/FOTOARENA/FOTOARENA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

19/06/2021 14h42

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* Cesar Calejon

Quinhentas mil vidas perdidas. Eis o resultado da interseção letal e dantesca que a interação do vírus com os impropérios adotados por Jair Bolsonaro e seus seguidores criou ao longo dos últimos dezesseis meses.

Enquanto isso, o presidente brasileiro ignorou múltiplas ofertas de vacinas (101 e-mails somente da Pfizer), incentivou o uso de medicações comprovadamente inócuas contra a covid-19, trouxe a Copa América ao Brasil e estimulou a disseminação ativa do vírus de forma deliberada. O que mais Bolsonaro precisa fazer para que, efetivamente, esteja caracterizado o crime de genocídio durante a sua trágica gestão durante a pandemia? Nada.

Vamos analisar, à luz da história, quais elementos estiveram presentes nos crimes que foram classificados como genocídios e como atuaram os seus principais arquitetos nesse sentido.

Ao longo dos últimos séculos, alguns crimes extremos foram considerados genocídios e delitos contra a humanidade. Invariavelmente, os perpetradores desses atos se utilizaram de dois aspectos fundamentais para concretizar as suas barbáries desumanas em busca da manutenção dos seus poderes: (1) acesso a meios hegemônicos de comunicação de massa e (2) uma propaganda agressivamente organizada com base em discursos segregacionistas de ódio ou medo para submeter (e exterminar, em última instância) os grupos divergentes.

O Holocausto, Polônia, Camboja, Armênia e Ruanda são apenas alguns exemplos de como essa arquitetura da destruição é constituída por ideias e retórica, inicialmente, para então ganhar a dimensão efetiva do massacre.

Muito antes do surgimento dos modelos de extração de atenção e das redes sociais digitais, um dos atos criminosos mais selvagens e tristes da história humana, o Genocídio em Ruanda, vitimou mais de 800 mil pessoas da etnia tutsi. Mulheres, homens, idosos e crianças foram mortas a golpes de foice e porretes por membros do grupo hútus, em 1994. O genocídio foi perpetrado com o auxílio direto de desinformação, discursos de ódio e uma rede social.

Nos meses anteriores ao extermínio, Félicien Kabuga, um dos empresários mais ricos do país naquela ocasião, além de comprar as armas brancas que foram utilizadas na "limpeza étnica", utilizou a sua rádio, Mille Collines, para transmitir à população de todo o país milhares de horas de mensagens de ódio caracterizando os tutsis como insetos que deveriam ser esmagados para o surgimento de uma nação superior.

Esta mesma dinâmica de propaganda foi adotada por Hitler e Goebbels e vem sendo aplicada no Genocídio Rohingya, no estado de Mianmar, no sul da Ásia, desde 2016, por exemplo. Contudo, o veículo de comunicação de massa utilizado pelos perpetradores de agora é a plataforma oferecida pelo Facebook.

Na década de 1920, os nazistas ainda sequer tinham um partido consolidado e seus seguidores não somavam à casa dos milhares. Hitler, que despertara a atenção de Dietrich Eckart por ser um excelente orador, inicia Goebbels no nazismo como ministro da comunicação e ambos passam a elaborar e a disseminar ideias de ódio e/ou medo para toda a nação.

Uma década mais tarde, a Alemanha inteira estava fortemente embarcada na ilusão nacionalista. Doutor em Filosofia, Goebbels afirmava, de forma reducionista e anacrônica aos tempos atuais, que "as grandes revoluções não são feitas por intelectuais ou grandes escritores, mas por grandes oradores" e que "propaganda jamais apela à razão, mas sempre à emoção e ao instinto".

Pode-se dizer, portanto, que tais métodos e preceitos fazem parte do modus operandi dos genocidas. Casos assim são os resultados extremos do que a perigosa combinação de ódio e veículos de comunicação de ampla abrangência pode produzir, ao fim e ao cabo.

Apesar de não ser um orador brilhante, Bolsonaro foi extremamente eficiente ao apelar para os elitismos histórico-culturais do "brasileiro médio" e vem utilizando, principalmente no que diz respeito à comunicação presidencial e durante a crise pandêmica, abordagens idênticas ao que fizeram os principais genocidas da história.

No Brasil, entre 2020 e 2021, estes processos de desinformação, negação e disseminação deliberada de ódio via internet foram determinantes para agravar a crise causada pelo coronavírus e também custaram centenas de milhares de vidas. Nos últimos anos, Bolsonaro fez declarações de todas as ordens nesse sentido: contra a comunidade LGBTQIA+, negros, mulheres, os direitos humanos etc.

O presidente brasileiro, enquanto ainda em campanha na corrida pelo Planalto, efetivamente disse que o ideal seria "fuzilar a petralhada" do Acre e que "quilombolas não servem nem para procriar", utilizando termos que são empregados para pesar animais para se referir aos povos originários da nossa terra.

Durante a pandemia, Bolsonaro negou a existência e a gravidade da doença de todas as formas possíveis, criou uma crise institucional com múltiplas dimensões - conforme abordado em artigo prévio publicado nessa coluna -, prescreveu medicações inúteis contra a peste, sabotou o plano vacinal e a ciência, orientou a população a invadir os hospitais para verificar se os leitos estavam ocupados e assim por diante. A lista de crimes é extremamente longa e todos esses registros estão gravados e disponíveis em vídeo. Ou seja, um genocida confesso em ampla medida.

Dessa forma, o projeto genocida do bolsonarismo, que foi previamente anunciado à sociedade brasileira e aprovado sob o endosso de mais de 57 milhões de votos naquela ocasião, deixa como legado um rastro de destruição anteriormente impensável para o país: O Genocídio do Brasil.

Para piorar, caso Bolsonaro continue no poder até o fim de 2022, o Brasil talvez alcance a triste marca de mortes do Genocídio de Ruanda, por exemplo, ou talvez supere até a marca de um milhão de mortes decorrentes da peste. Seremos o país mais afetado em todo o mundo. Assim, não se trata somente da ausência de articulação, coordenação e liderança federal. Faltou tudo. O mínimo de bom senso e decência já evitaria tanta dor e perdas.

Apesar disso, Bolsonaro segue com a sua missão. Ele e a sua máquina de morte ainda têm outros dezesseis meses pela frente para, talvez, catalisarem as mortes de outras quinhentas mil pessoas no Brasil, porque, apesar dos estragos atuais já serem irremediáveis, para o bolsonarismo sempre cabe mais.

Conforme também enfatizado em artigos prévios publicados nessa coluna, o genocídio conduzido pelo bolsonarismo no Brasil entre os anos de 2020 e 2021 - caso não seja julgado pelas instâncias presentes no ordenamento jurídico doméstico - deverá ser sentenciado por cortes internacionais no sentido de imputar as devidas responsabilidades às figuras políticas diretamente envolvidas com os fatos. O Brasil precisará olhar com muita seriedade para os seus Julgamentos de Nuremberg.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).