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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Na contramão da ciência, Osmar Terra ainda propaga mentiras sobre a covid

30.jul.19 - O deputado federal Osmar Terra - Marcelo Cammargo / Agência Brasil
30.jul.19 - O deputado federal Osmar Terra Imagem: Marcelo Cammargo / Agência Brasil

Colunista do UOL

21/06/2021 23h52

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* Igor Tadeu Camilo Rocha

Dois dias antes de o Brasil chegar à inaceitável marca de 500 mil mortos por covid-19, Jair Bolsonaro, como é de costume, mentiu na sua live semanal, dizendo que a contaminação pelo vírus é mais eficaz contra a doença do que as vacinas. Com essa declaração, o presidente brasileiro voltou a uma receita que, junto com o boicote à imunização e a propaganda de medicamentos ineficazes contra a covid, vem sendo considerada uma das principais responsáveis por esse genocídio: a hipótese da imunidade de rebanho.

Segundo essa hipótese, a despeito de medidas como as políticas de isolamento social, vacinação e outras formas de mitigação da circulação do vírus, seria inevitável que toda a população se contaminasse. Assim, somente depois de uma fração expressiva da população ter sido contaminada, com uma minoria tendo morrido e uma imensa maioria sido curada, as pessoas desenvolveriam uma imunidade natural que iria fazer com que as taxas de transmissão caíssem abruptamente, levando a pandemia ao fim.

Sem dúvidas, o maior divulgador dessa hipótese é o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), depoente desta terça (22) na CPI da Covid. Terra, ao contrário do presidente, publicou um tweet no dia em que a marca de 500 mil mortos - algo como uma cidade de Florianópolis ter sumido do mapa em 16 meses - foi alcançada pelo Brasil. É preciso que atentemos a um detalhe da sua mensagem.

O detalhe no qual devemos ter atenção é quando o emedebista se refere à pandemia como "forças da natureza". Isso desvela um aspecto central da sua defesa da hipótese da imunidade de rebanho, e acaba por formar uma base de sua argumentação e que norteará todo um campo de embates presentes no Brasil a respeito do que fazer em relação à pandemia. Vamos detalhar isso à frente.

No depoimento desta terça, os senadores terão muito material para sustentar uma arguição. Decerto, a fonte principal de argumentos em favor da hipótese da imunidade de rebanho está no próprio site pessoal do deputado, no qual podemos encontrar várias publicações sobre o tema. Na página principal, nota-se que a imunidade de rebanho, a volta às aulas presenciais e a defesa da ineficácia das medidas de isolamento social tornaram-se temas centrais de suas postagens de abril de 2020 até os dias de hoje.

Destaco dois artigos, que, além de constarem no site pessoal de Osmar Terra, foram publicados na imprensa. Um é intitulado Imunidade de rebanho, a ponta do iceberg e as vacinas, publicado em 26 de fevereiro de 2021; outro artigo, anterior, tem o título Medo e coragem, publicado em 6 de abril de 2020.

Ambos os artigos, separados por alguns meses e por estágios distintos de conhecimento da comunidade científica sobre a pandemia, sintetizam aspectos centrais da hipótese da imunidade de rebanho, bem como a postura inflexível de Osmar Terra na sua defesa. A intenção aqui é a de mostrar alguns elementos presentes nos artigos do deputado, tendo os dois citados como centrais, mas passando por algumas outras publicações.

Pandemia como força da natureza

Para Osmar Terra, ser contaminado pelo Sars-Cov-2 ou por suas variantes cada dia mais numerosas é apenas uma questão de tempo. Tanto o surgimento quanto o controle da pandemia só podem acontecer por uma via, que é a natural. À Folha, em abril de 2020, o deputado argumentava que a contaminação pelo vírus:

É um processo inexorável, faça quarentena ou não faça. Foi assim na gripe espanhola, em 1919, na gripe asiática, em 1957, na gripe A (H1N1), em 2009, e na primeira curva do coronavírus na China. Ela dura em torno de 10 a 14 semanas. No Brasil, ao redor da terceira semana de abril deverá começar a queda do número de novos casos, terminando na primeira semana de junho. Façam ou não façam quarentena! Por isso, defendo priorizar e reforçar a proteção dos grupos de maior risco de contágio: idosos e doentes crônicos, como fazem os países com melhor resultado, como Coreia do Sul, Japão, Israel e Suécia. E complementar aplicando o maior uso de testes.

Osmar Terra, como vemos, reforça a tese de que todos, em algum momento, serão contaminados pelo novo coronavírus e que, naturalmente, após 10 a 14 semanas, aconteceria uma queda natural de casos diante da imunidade conseguida pela contaminação geral da população. Com ou sem isolamento, com ou sem vacinação, esse processo, para ele, seria incontornável. Caberia, então, apenas proteger grupos de risco, com uma espécie de isolamento restrito a idosos e imunossuprimidos, e esperar a natureza agir para a pandemia terminar.

O tempo passou e, como sabemos, a "previsão" do deputado emedebista não se realizou. Pelo contrário, em 6 de abril de 2020 havia 12.239 casos de covid-19 no Brasil e 566 mortes registradas pela doença. No final de fevereiro de 2021, quando o primeiro dos artigos citados foi publicado, o país passou por nova onda de contaminações e mortes. Em 26 de fevereiro, as mortes chegavam a 252.835 e os casos, em 10.455.630, com tendência acentuada de crescimento, o que foi confirmado no mês seguinte, com picos de quatro mil mortes diárias.

Mas isso não impediu Osmar Terra de reforçar a tese da naturalidade e inevitabilidade do contágio. No artigo citado, ele defendeu que "pandemias e epidemias são uma força da natureza. Um novo vírus, quanto mais contagioso, mais se propaga, sem respeitar quarentenas horizontais e lockdowns. Ele só será contido por outro poderoso fenômeno da natureza: a imunidade coletiva ou de rebanho."

Independentemente dos fatos e dos consensos científicos em torno da questão, a concepção de Osmar Terra sobre a doença como força imparável da natureza permanece inflexível. E esse aspecto é muito importante para entendermos sua defesa da imunidade de rebanho, uma vez que ele traz consequências para toda a sua ideia sobre o que fazer na pandemia.

Num trecho revelador no mesmo artigo, Terra diz que, quando se fala de "imunidade coletiva ou de rebanho, não estamos propondo uma estratégia. Estamos fazendo uma constatação de como evoluem todas as epidemias, sejam elas grandes pandemias ou surtos gripais de inverno." Ou seja, para ele, a imunidade de rebanho é um fato, solução única e há nada que possamos fazer, exceto pequenas escolhas sobre quem proteger e cuidados individuais.

A pseudociência é definida, grosso modo, como a defesa de teorias ou hipóteses falsas ou que não podem ser cientificamente comprovadas segundo protocolos da produção científica, mas que, pela forma como são apresentadas, pretendem ser tão científicas quanto qualquer trabalho que seguiu protocolos e avaliações rigorosas.

Pseudociência é, em suma, um conteúdo não científico apresentado formalmente como embasado na ciência. Osmar Terra faz isso quanto à hipótese da imunidade de rebanho: parte-se de uma ideia verdadeira, de que o vírus e pandemias como a que vivemos são fenômenos naturais; porém, sua concepção quase metafísica de natureza como sendo uma força implacável contra a qual não podemos fazer nada, e não como um conjunto de fenômenos dos quais podemos procurar por explicações, sustenta uma rejeição sistemática contra qualquer ação coordenada contra o vírus e a pandemia.

Isolamento social e vacinação: a ideia de que nada podemos fazer

Sobre a vacinação, Osmar Terra cravava que "todas as pandemias, por serem causadas por novos vírus, chegam ao fim antes que vacinas consigam ser desenvolvidas e utilizadas em grande escala." Esse ponto apareceu no artigo anterior, publicado na Folha quase um ano antes. À época, era razoável argumentar a favor do deputado, já que as expectativas de vacinação em massa eram ainda distantes. Mas ele insistia nesse ponto em fevereiro de 2021, enquanto processos de vacinação em massa já eram realidade noutros países, com resultados positivos, e o Brasil via um preocupante aumento na média móvel de mortes por covid-19.

Por que dessa insistência? Novamente, porque Osmar Terra segue o fio da pandemia como obra implacável da natureza, contra a qual pouco ou nada pode ser feito. À Folha, em abril de 2020, dizia que era o "aumento do contágio por assintomáticos (mais de 90% dos casos) que faz uma epidemia de um vírus sem medicação específica e sem vacina parar de progredir e terminar", concluindo que isso se experimentou em todas as pandemias e epidemias até hoje.

Osmar Terra repetia isso em fevereiro de 2021, dizendo que "todos os surtos epidêmicos levam a um contágio grande, num curto período de tempo (sic). Com isso, aumenta rapidamente o número de pessoas infectadas, curadas e imunizadas, como se fizessem uma vacina natural, mais potente que as produzidas em laboratórios."

Assim, caberia esperar que todos se contaminem, pois somente a "vacina natural" da imunidade de rebanho poderia ser efetiva. Somente ela segue o curso natural incontornável das coisas. Agir de outra maneira, nessa linha de argumentação, além de não evitar mortes ou minimizar a tragédia, seria prejudicial.

Por exemplo, noutro artigo de seu site pessoal, Terra argumenta sobre uma suposta situação dramática de surtos de covid-19 em asilos de idosos ao redor do mundo (artigo de 24/09/2020). Ali, faz relação direta entre a permanência no isolamento entre idosos institucionalizados e tal alta de mortalidade nesse grupo, juntamente com exemplos de que o afrouxamento do isolamento noutros grupos estaria relacionado a quedas de mortalidade.

Assim, Terra sugere que o "paradoxo das propostas de quarentena e de isolamento social é o de que justamente a população mais isolada, os idosos em asilos, compõe a maior parcela de mortes pela Covid-19 no planeta." Sem mostrar a fonte de seus dados, dizia que a permanência no isolamento por esses idosos estaria ligada a eles serem mais de 80% dos mortos no Canadá, por exemplo. O isolamento causa, não evita mortes, pela sua concepção.

Em debate com o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) na CNN Brasil, em maio de 2020, o deputado usou São Paulo e Nova Iorque como exemplos para defender que a maioria dos contágios acontecia com pessoas em casa, isoladas.

Também sem mostrar fonte de seus dados, no citado artigo à Folha, disse que "nos países europeus que radicalizaram na quarentena, em vez de diminuir, o número de casos aumentou muitas vezes e não houve achatamento da curva epidêmica." No outro artigo citado, sobre os asilos, dizia que "os coronavírus são mais transmissíveis por grupos que convivem maior tempo juntos, familiares ou de convivência compulsória, como nos asilos" sendo o isolamento, então, prejudicial.

Por fim, também é revelador, nesse ponto, que Osmar Terra tome cuidado ao estabelecer uma fronteira entre a sua defesa da imunidade de rebanho e teorias conspiratórias antivacina. Segundo ele, defender a imunidade natural, adquirida pelo contágio geral da população, não é contraditório com a defesa da vacinação. "A diferença é que as vacinas laboratoriais demoram mais tempo para fazer efeito" em relação à contaminação natural, devido aos longos processos de testagem e de desenvolvimento dos imunizantes como os do Instituto Butantan ou da Pfizer.

Reivindicando autoridade no assunto

Há vários outros pontos nas publicações de Osmar Terra que devem ser foco da atenção dos senadores interessados na verdade sobre a atuação do chamado gabinete paralelo. O foco deste texto, porém, é o conteúdo dos argumentos de Terra, do qual falamos até aqui.

Basicamente, eles partem de uma concepção específica de natureza para sustentar a ideia de que nada pode ser feito contra a covid-19, além de cuidados individuais e isolamento de pessoas pertencentes a grupos de maior risco. Mas como o deputado se faz levar a sério, mesmo diante da enormidade de evidências que apontam não somente para a hipótese da imunidade de rebanho estar errada, como para as consequências letais de sua adoção como política pública?

Nos artigos do deputado, uma forma constante de reivindicar autoridade no assunto é a autopropaganda. Basicamente, o deputado faz questão de afirmar que sabe do que fala quanto a saúde pública e ao tratamento de epidemias e pandemias. Complementando isso, é necessário na argumentação de Terra dizer que agir de acordo com o que ele sabe por meio da experiência é uma questão de coragem política.

No artigo publicado na Folha, Terra afirmou: "Quando coordenei o enfrentamento à devastadora pandemia de H1N1 no Rio Grande do Sul — o epicentro dela no Brasil —, segui protocolos científicos e não fechei escolas, comércio e indústrias porque não tive lá, como não há agora, evidências de que tais medidas reduzam o curso da epidemia. Resolvi correr o risco sanitário e político disso. A ciência prevaleceu com o controle rápido do surto, sem faltar atendimento à população."

No outro artigo publicado na imprensa, ele acrescenta a experiência de enfrentamentos da epidemia de dengue no Rio Grande do Sul (2007) e de zika vírus no Nordeste, em 2015, reafirmando que aguardar a ação natural da imunidade de rebanho, arcando com os custos políticos de adotar essa política, é a solução possível.

Junto a esse tipo de argumentação, estão outras duas teses: de que políticas de isolamento são baseadas na disseminação do pânico coletivo e de que elas também são mais nocivas à população pobre, ou seja, que fazer o isolamento social é, além de tudo, um privilégio.

Quanto ao primeiro ponto, Osmar Terra diz admirar a coragem do presidente Jair Bolsonaro "de se posicionar contra uma correnteza de pânico, se recusando a pegar carona no medo, pensando no futuro do nosso país". Noutro artigo de seu site, no qual defende a reabertura imediata de escolas, o deputado do MDB faz uma longa apresentação de números visando refutar a "projeção apocalíptica" do Imperial College, buscando mostrar, em setembro de 2020, que a pandemia estaria chegando fim, que crianças possuem "proteção natural" contra o vírus e que os dados não sustentariam qualquer necessidade de medidas de isolamento.

O apelo a um tipo de sensibilidade social também é constante. No artigo à Folha, conclui dizendo que "ficar em casa de quarentena curtindo Netflix é privilégio de poucos", logo depois manifestar preocupação com trabalhadores informais, autônomos e pequenas empresas, além do desemprego.

No artigo que defendia a reabertura das escolas, argumenta que sem isso a desigualdade educacional e econômica no Brasil aumentaria. À CNN Brasil, afirmou em abril de 2020 que "a quarentena é fictícia, não tem quarentena na favela do Alemão, na favela da Rocinha, não tem como isolar esta população socialmente. As pessoas estão sofrendo muito lá e estão passando fome porque estão perdendo os empregos", disse.

Essa sensibilidade aos efeitos do isolamento para os pobres não apareceu quando Osmar Terra votou favoravelmente ao governo federal na PEC que recriou o auxílio emergencial no valor de somente R$ 250,00 em quatro prestações. Também não esteve presente quando desconsiderou, nas suas falas, dados como o de que a população negra, pobre e periférica é a mais vulnerável à covid-19 e que essa mesma população tem menor acesso à vacinação.

Conclusão

No fim de 2020, Terra liderava a lista de maiores divulgadores de notícias falsas sobre a covid-19 dentre parlamentares. Entre o início da pandemia e os dias de hoje, o deputado tornou-se a principal referência na defesa da hipótese da imunidade de rebanho. Hoje, ele é uma figura relevante e central no ecossistema bolsonarista, que, além da tal imunidade natural, propaga o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a doença.

Ouvir Osmar Terra na CPI deve servir para elucidar sua posição como referência nesse ecossistema, mas, sobretudo, deve servir para que venha a público o quanto suas ideias se tornaram efetivamente políticas de Estado, influenciando decisões do governo e do Ministério da Saúde. Cabe aos senadores garantir que a verdade venha à tona, e que alguma justiça seja feita às mais de 500 mil vítimas da política homicida propagada por Terra e companhia.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais