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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Triunfo de Doria reforça status bolsonarista da terceira via

21.nov.2021 - O governador de São Paulo, João Doria, durante o primeiro dia de prévias do PSDB, em Brasília - Fátima Meira/Estadão Conteúdo
21.nov.2021 - O governador de São Paulo, João Doria, durante o primeiro dia de prévias do PSDB, em Brasília Imagem: Fátima Meira/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

29/11/2021 08h30

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Há quase 18 anos, durante um período numa universidade no sul dos Estados Unidos, travei um diálogo com dois colegas brasileiros que, nos dias de hoje, soaria bizarro aos ouvidos daqueles que acompanham a política nacional. Ao discutirmos aquilo que na nossa visão era falta de politização das entidades estudantis americanas, pontuei que se tratava de uma situação melhor que a do Brasil. Aqui, diretórios acadêmicos e afins eram geralmente dominados pela esquerda, a qual, assim, monopolizava o debate político universitário e limitava o surgimento de novas lideranças que não rezassem a cartilha do PT e de seus satélites.

Quase duas décadas depois, meu "desejo" foi cumprido, mas por vias tortas. Desde o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e particularmente após as eleições de 2018, vemos uma direita que se assume como tal, inclusive em universidades públicas. O que jamais esperava era que siglas consideradas "de aluguel" tomassem partido a ponto de lançarem candidatos ao Executivo, se posicionando sem maiores pudores no espectro da ultradireita. Tampouco meus piores pesadelos anteviam o que se passa com o PSDB, partido que assumiu a face da centro-direita à medida que o PT, de esquerda, acenou ao centro enquanto no poder.

Com a confirmação o triunfo do governador paulista João Doria sobre o colega gaúcho Eduardo Leite nas prévias tucanas, enterra-se o PSDB histórico. Não que uma eventual candidatura Leite representasse uma ruptura com o bolsonarismo que contaminou o tucanato, mas, com Doria sentindo-se dono do partido, ficará impossível para o PSDB reconsiderar seus rumos pós-2022. O slogan BolsoDoria no segundo turno de 2018 equivale a uma marca eterna de gado da ultradireita no agora pré-candidato tucano.

Na definição de Cas Mudde, cientista político holandês radicado nos EUA e talvez o maior teórico sobre o populismo de direita da atualidade, a ultradireita (far right, no conceito original em inglês) é composta pela direita radical (que aceita o jogo democrático, mas avança a agenda de erosão de direitos, tendo como alvo principal as minorias) e a extrema direita (a favor do autoritarismo).

Mudde promete aplicar tal debate ao Brasil em palestra online às 15h de 9 de dezembro (quinta), organizada pelo Observatório do Populismo e Nacionalismo (OPEN), grupo de pesquisa que eu coordeno no curso de Relações Internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado. A transmissão ao vivo será realizada neste link.

Desconheço a análise que Mudde fará sobre a política brasileira. Hoje, porém, parece-me que dois partidos que há menos de uma década eram vistos como fisiológicos abraçaram com entusiasmo cada uma das tendências de ultradireita. Enquanto o Podemos (antigo Partido Trabalhista Nacional, PTN) enquadra-se na direita radical ao lançar o ex-juíz e ex-ministro bolsonarista Sergio Moro ao Planalto e buscar a filiação de lavajatistas como Deltan Dallagnol, o Partido Liberal (que já foi Partido da República) será a casa da extrema direita propriamente dita a partir de terça-feira, quando o presidente Jair Bolsonaro será recebido com fanfarras pelo presidente da agremiação e ex-presidiário condenado por corrupção Valdemar da Costa Neto.

Os moristas devem estar em polvorosa ao vê-lo ser classificado como direita radical, mas como posicionar no espectro político alguém que defende o excludente de ilicitude senão como uma figura que está no campo da ultradireita? Moro não parece ser adepto de um golpe militar, mas sua atuação como juiz diz muito a respeito de sua visão sobre direitos individuais.

Importante lembrar que o PTN histórico, pré-ditadura, foi o partido pelo qual o populista de direita Jânio Quadros elegeu-se presidente em 1960 para apenas renunciar em agosto do ano seguinte numa tentativa de autogolpe. Jânio pelo menos fez uma política externa independente, enquanto as noções moristas de relações internacionais, por ora, indicam subserviência aos Estados Unidos, como bem lembra Cesar Calejon em texto para a coluna.

Se até o começo deste ano alguém me dissesse que o PL lançaria candidato a presidente, eu daria de ombros. Para um partido com reputação patrimonialista, o PL abraçou o bolsonarismo com um apetite voraz. Costa Neto parece querer ceder às demandas do presidente e sua prole. O custo político pode ser alto para uma agremiação que se acostumou a viver sempre no poder.

As águas turvas do bolsonarismo, portanto, serviram de cativeiro para que a direita brasileira finalmente emergisse sem qualquer vergonha. Infelizmente, uma direita mais civilizada, com um mínimo sentido de nação, parece não ter chances na corrida presidencial.

A União Brasil, resultado da fusão do Partido Social Liberal (PSL, ainda repleto de bolsonaristas) e do Democratas (herdeiros da Aliança Renovadora Nacional, ARENA, partido de sustentação à ditadura), poderia desempenhar tal papel a duras penas. No entanto, seu principal presidenciável, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, mal pontua nas pesquisas e já é cogitado como vice de Moro. Este, por sua vez, também flerta com o vencedor das prévias do PSDB. O União Brasil também consideraria oferecer a cabeça de chapa a Leite, que se prestou a fazer o papel de garoto de recados do bolsonarismo contra a vacinação anti-covid iniciada por Doria.

Na melhor das hipóteses, PSDB e União Brasil seriam, ainda segundo o modelo desenvolvido por Mudde, conservadores que adotaram pelo menos em parte a agenda da ultradireita em reação à pressão eleitoral que esta impõe à direita clássica, que tende ao centro. No contexto brasileiro, porém, tucanos e "unionistas" equivalem hoje, na prática, a PL e Podemos: buscam o Poder Executivo, mas se contentam caso expandam suas bancadas no Legislativo federal com o voto patrimonialista à direita.

Nesse cenário, a direita republicana parece não ter outra alternativa a não ser torcer para que o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, de saída do PSDB com o triunfo de Doria, seja o vice do petista Lula, exigindo do ex-presidente um (improvável) compromisso contra o patrimonialismo.

A verdadeira "terceira via" é isso aí: molusco regado ao molho de chuchu. O resto é ultradireita ou simulacros, trazendo consigo, portanto, o tempero amargo do autoritarismo sob a lógica majoritária — anti-minorias, anti-pobre — que engole a democracia eleitoral. Das águas turvas do bolsonarismo, a direita tropical emerge cristalina como nunca.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.