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OPINIÃO

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TSE oficializa 'milicocracia' no Brasil

08.jun.22 - Ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Oliveira, fala à Câmara sobre compras de Viagra pelo Exército - Reprodução/TV Câmara
08.jun.22 - Ministro da Defesa, General Paulo Sérgio Oliveira, fala à Câmara sobre compras de Viagra pelo Exército Imagem: Reprodução/TV Câmara

Colunista do UOL

14/06/2022 10h08

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Estamos sob tutela militar. Parece óbvio, mas, num país onde até alguns meses atrás ouvíamos com certa frequência que as instituições estão funcionando, faz-se necessário dar o devido significado ao gesto do ministro Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de estender a mão aos militares que querem monitorar o pleito de outubro próximo.

Ao convidar o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, ao "diálogo interinstitucional", Fachin reconhece a primazia dos fardados num processo que deveria dizer respeito apenas às esferas civis. O presidente do TSE parece querer colocar panos quentes, para usar uma expressão popular, naquilo que o general Nogueira diz ser desprestígio às Forças Armadas.

A "milicocracia"— ou seja, o governo dos militares — endossa a paranoia bolsonarista em relação ao sistema eleitoral que, em quase 30 anos de uso de urnas digitais, não havia sofrido tamanho escrutínio até que o atual presidente fosse eleito.

Ainda que não termine num golpe de fato, a "milicocracia" já é percebida no exterior como ameaça à democracia. Reportagem do jornal The New York Times, que vê a possibilidade de golpe em outubro com apoio militar, deixa claro aquilo que já devia ser reportado há tempos em letras garrafais pela imprensa pátria: vivemos sob os desígnios daqueles que se arrogam conduzir e defender a nação com braço forte e mão amiga.

As forças desarmadas, para usar expressão do próprio Fachin antes de ele se colocar de joelhos perante os militares, perderam essa batalha e, muito provavelmente, a guerra pela democracia. Arrisco-me dizer que as eleições no Brasil serão por muitos anos, quiçá décadas, dominadas pelas Forças Armadas.

Nós, civis, fracassamos, em criar uma República de fato. Não se governa dando as costas para o povo. Não obstante os avanços sociais trazidos pela Constituição de 1988, boa parte da população brasileira seguiu marginalizada pelas instituições, à mercê da tortura policial e da violência de marginais. Em meio à falta de segurança e percepção de corrupção generalizada, prosperou o discurso salvacionista do qual o presidente Jair Bolsonaro é o maior representante hoje.

Se a democracia brasileira está em metástase, não é a "milicocracia" que vai salvá-la. O projeto de nação recentemente apresentado com o apoio de generais da reserva é risível. Seus autores não empregaram o mais primário dos recursos para se antecipar ao futuro — ou seja, traçar diferentes cenários em vez de considerar apenas um. Até na China comunista, de partido único, o governo estimula acadêmicos a considerar cenários distintos de modo a estimular o debate para o bem da nação.

O problema está na formação dos militares, que ainda leem nas academias preparatórias ou referências da Guerra Fria, ou o basculho olavista que deu verniz intelectual à barbárie por ora no poder.

Tal como configurada hoje, a "milicocracia" nada tem a ver com as aspirações vanguardistas da ditadura militar que, embora autoritária, deu continuidade ao projeto de nação iniciado nos anos 1930 sob a égide positivista. Temos hoje, na prática, uma caquistocracia — o governo e a tutela dos piores.

Bolsonaro pode perder em outubro, mas o deserto mental em que ele floresceu espalha areia até mesmo sobre os solos mais férteis, dos quais poderiam surgir boas ideias para revigorar a nação. Qualquer tutela é ruim, mas ser tutelado por alguém pior que si mesmo é o pior dos mundos.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.