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Democracia e Diplomacia

OPINIÃO

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A quem serve a diplomacia presidencial de Bolsonaro?

21.set.2021 - O presidente Jair Bolsonaro durante discurso de abertura da 76ª Assembleia-Geral da ONU - Eduardo Muñoz/Reuters
21.set.2021 - O presidente Jair Bolsonaro durante discurso de abertura da 76ª Assembleia-Geral da ONU Imagem: Eduardo Muñoz/Reuters

Colunista do UOL

07/10/2021 04h00

Por Robson Coelho Cardoch Valdez*

Diante do crescente dinamismo de cúpulas e encontros internacionais, a diplomacia presidencial tornou-se vigoroso instrumento de promoção dos interesses dos países no exterior. Conforma-se, também, como estratégia inserida em cálculos políticos internos do presidente da República.

Diferentemente de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que se notabilizaram por lançar mão dessa estratégia para avançar em temas como a integração latino-americana e a conquista de mercados para os exportadores brasileiros, Bolsonaro utiliza-se da agenda internacional em benefício próprio, alienando interesses e a imagem do Brasil no exterior.

Essa apropriação da agenda externa em benefício de interesses pessoais tem ficado evidente a cada novo discurso nas aberturas da Assembleia-Geral da ONU. Os brasileiros observamos, desconcertados, o presidente instrumentalizar palcos internacionais não para obter ganhos ao país no concerto das nações, mas para propagar desinformações e manter o engajamento de sua base eleitoral.

Em seu primeiro discurso, em 2019, Bolsonaro afirmou que o Brasil ressurgia no cenário internacional "depois de estar à beira do socialismo", que, segundo sua avaliação, atacava a religião e os valores da família. Aproveitou o púlpito para atacar Cuba e o programa Mais Médicos. Naquele momento, estava claro que o alvo de seus vitupérios abarcava tudo que esse país representa no imaginário da extrema direita, especialmente na rede bolsonarista de fake news.

Nesse sentido, sobrou, é claro, para o Foro de São Paulo e outros espantalhos da agitação extremista.

Na ocasião, Bolsonaro comemorou a assinatura de livre comércio Mercosul-União Europeia, engavetado pela União Europeia frente à desastrosa política ambiental brasileira. Na defensiva, disse que sofria ataques da "mídia internacional" e que a Amazônia não é um patrimônio da humanidade, pois essa conversa de "pulmão do mundo", segundo Bolsonaro, é uma "falácia".

O presidente brasileiro, que hoje se notabiliza pelos ataques à imprensa e à democracia, é o mesmo que afirmava compromissos com a imprensa livre e as instituições republicanas.

Em 2020, no contexto da pandemia do novo coronavírus, que já havia ceifado mais de 120 mil vidas brasileiras, Bolsonaro iniciou discurso culpando supostas decisões do STF pelo então cenário de desgoverno e desesperança no enfrentamento da covid-19. Sem surpreender, culpou também a imprensa pela politização da pandemia "disseminando pânico entre a população".

No que se refere ao meio ambiente, ressaltou, de novo, ser vítima de "campanha mundial de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal", relacionando-a com o fato de o Brasil ser grande produtor de alimentos, e acusou a Venezuela pelo derramamento de óleo nas praias brasileiras em 2019. Da mesma forma que no discurso anterior, defendeu a liberdade religiosa e apelou à comunidade internacional para combater a "Cristofobia".

Por fim, reafirmou seu alinhamento automático com os EUA saudando acordo unilateral de Trump para a questão palestina e reiterando a pretensão de ser escolhido pelo seu "best friend" para fazer parte da OCDE, o clube dos ricos.

Neste ano, órfão da vergonhosa relação de submissão que mantinha com os Estados Unidos de Trump, Bolsonaro, sem criatividade, trouxe questões conjunturais e reforçou espantalhos dos discursos anteriores (socialismo, comunismo etc.).

Mesmo sabedor da inexistência da "caixa preta" do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), Bolsonaro reforçou, para sua imprevidente base eleitoral, o fim do financiamento de obras em "países comunistas" com recursos do "povo brasileiro". Nesse ponto, não mencionou que os EUA foram o destino de maior parte das exportações brasileiras financiadas pelo BNDES.

Em seguida, disse que o Brasil nunca desfrutou de tanta credibilidade internacional, mas sem explicar por que a União Europeia, para nossa sorte, recusa-se a firmar o acordo de livre comércio com o Mercosul!

Reforçou que a família tradicional é o "fundamento da civilização" e que o país vem fazendo excelente trabalho acolhendo refugiados venezuelanos da "ditadura bolivariana".

No que diz respeito aos refugiados afegãos, mostrou-se preocupado com a situação dessas pessoas, mas deixou claro que receberá somente afegãos "cristãos". O Brasil receberá também mulheres, juízes e crianças, adicionou. Mas desde que sejam cristãos? Em um país de maioria muçulmana?

Por fim, lamentou as vítimas da pandemia do novo coronavírus e culpou governadores e prefeitos pelas medidas de lockdown supostamente responsáveis pela crise econômica. Afirmou que concedeu auxílio de US$ 800 para mais de 68 milhões de pessoas em 2020 e defendeu o tratamento precoce com medicamentos ineficazes no combate à covid-19.

O presidente, portanto, segue instrumentalizando o discurso do Brasil na ONU para engajar sua militância. Para Bolsonaro, termos como comunismo, Foro de São Paulo, socialismo, mídia internacional, imprensa, cristofobia, família tradicional, civilização, Amazônia, soberania, ditadura, Cuba, Venezuela etc. são cuidadosamente escolhidos para rechear seu palavrório a despeito do evidente dano que têm causado para a credibilidade do Brasil na arena internacional.

Neste ano, tudo foi ainda mais vexatório pela insistência, estrategicamente pensada, da comitiva presidencial em subscrever o negacionismo presidencial. As cenas do Ministro Queiroga, que deveria cuidar das pessoas, e do chanceler Carlos França, que tem como mandato constitucional a defesa da paz, provocando manifestantes com gestos obscenos e "fazendo arminha" —símbolo dos impulsos de violência bolsonarista— retratam o tamanho do desafio para aqueles que se preocupam com o imperativo de recuperar a imagem e o prestígio do Brasil.

Mas há esperanças! A despeito de suas evidentes vinculações com projeto de subordinação que já vinha de Michel Temer, o processo de degradação do Brasil está intimamente relacionado à figura do atual presidente e tudo de negativo que representa no imaginário internacional.

Dessa forma, na medida em que as pesquisas apontam para sua crescente rejeição, as eleições presidenciais de 2022 podem ensejar necessária correção de rumos na política externa brasileira. Ainda que seja uma tarefa difícil para o próximo governo, existe a expectativa de que até lá o pior já terá passado. Ou será possível afundarmos ainda mais?

* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais (IREL-UnB), doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros "Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula" (Appris, 2019) e "Subindo a Escada - A Internacionalização de Empresas Nacionais no Governo Lula" (Appris, 2019). Contato: robsonvaldez@hotmail.com.