Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sem políticas públicas, o que será dos órfãos da COVID no Brasil?
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Juliana Matoso Macedo*
A desarticulação, o corte no orçamento e o encerramento deliberado de políticas públicas para crianças e adolescentes projeta-lhes um futuro sombrio.
O número de crianças e adolescentes que ficaram órfãos na pandemia ainda é uma incógnita. As informações não são publicizadas e transparentes, impossibilitando ações efetivas por toda a sociedade junto ao Estado. O caso da educadora Mariza Lima, de Manaus, que morreu no dia 10 de fevereiro, deixando quatro filhos (incluindo um casal de gêmeos de apenas 2 meses) e uma família devastada ilustra a realidade de centenas de milhares de crianças pelo Brasil. Estima-se em torno de 168 mil casos de crianças órfãs dos seus cuidadores.
Esse grupo integra aqueles mais vulneráveis a riscos de diversas magnitudes, junto a pessoas com deficiência, mulheres, comunidade LGBTQi, negros e povos e comunidades tradicionais. Para que o bem-estar seja garantido a todos torna-se impositivo que as políticas públicas olhem prioritariamente para esses grupos, considerando o fator renda e raça como pano de fundo.
No mundo, são 2,2 bilhões de crianças e adolescentes, o que representa mais de 30% da população mundial. A América Latina é responsável por 8% desse total (180 milhões), sendo que 51% vivem em situação de pobreza (91 milhões) . No Brasil, essas somam 53 milhões (menos de 18 anos), integrando aproximadamente 40% das famílias. Há uma projeção de que, pelo menos, 18 milhões, de 0 a 14 anos, estejam em situação de pobreza ou extrema pobreza. Por outro lado, enquanto o grupo até os 17 anos representam 6% do total de mortes violentas intencionais, esse número sobe para 47%, quando consideramos a faixa entre 18 e 24 anos. Há mais de dois anos morrem 17 crianças e adolescentes por dia no Brasil por causas violentas!! E quando olhamos para os casos de estupro no país, esses se concentram entre os 10 e 13 anos de idade (83% dos estupros são ocasionados por conhecidos das vítimas).
Todo esse quadro tem cor, uma vez que 56% das crianças e adolescentes são negras (pretas ou pardas).
Nas últimas décadas uma série de políticas públicas federais e nacionais teve impactos diretos nas crianças e adolescentes, seguindo os preceitos da Constituição Federal de 1988, dentre as quais:
- alívio imediato da pobreza e proteção a crianças com deficiência (Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada);
- segurança alimentar e nutricional (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Fomento a Agricultura Familiar articulada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar, educação alimentar e nutricional);
- condições adequadas de moradia (Programa Minha Casa Minha Vida, Luz pra Todos, Programa Cisternas);
- incentivos a matrícula e frequência escolar (condicionalidades do Programa Bolsa Família, Projeto Trajetória Escolar, Programa Caminho da Escola ),
- construção de creches públicas (Programa Proinfância);
- indução a implantação da educação integral e em tempo integral (Programa Mais Educação - Programa Mais Cultura nas escolas, Programa Segundo tempo, Direitos Humanos, Educação Ambiental, Agroecologia,Media.);
- ampliação de cobertura e acesso a vacinação (Calendário Nacional de Vacinação, Programa Saúde da Família, condicionalidades do Bolsa Família);
- promoção da saúde integral das crianças e estudantes (Programa de Saúde Integral a Criança, Programa Saúde na Escola);
- serviços sociais específicos por faixas etárias (serviços de convivência e fortalecimento de vínculos);
- trabalho social com as famílias (Serviços de Proteção e atendimento integral às famílias);
- combate à violência contra crianças (Conselhos Tutelares, Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI).; Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; Programa de Proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte)
Para a implementação dessas políticas tornou-se indispensável a articulação entre os setores (ministérios) e com estados e municípios, caracterizando o que pode ser denominado como 'governança intersetorial multinível'.
As materializações dessas articulações se deram por meio dos comissões e fóruns de gestão, conferências e conselhos intersetoriais que reuniam representantes da sociedade civil e do poder público nos níveis federal , estadual e municipal para discutir as produções das políticas públicas, com conhecimento e a partir das demandas dos cidadãos.
Ainda havia muito o que avançar. Entretanto, a partir de 2016 mudanças contínuas passaram a configurar os espaços de implementação de tais políticas, sem ter como base evidências científicas. Essas envolveram desde desarticulações entre ministérios, passando pela total ausência de concertação nacional junto a estados e municípios e inanição das próprias políticas públicas. Por isso, o atual processo em curso no Brasil tem sido cada vez mais analisado sob a ótica do desmantelamento de políticas públicas (que levam em conta: preferências políticas; estruturas de oportunidades; estratégias utilizadas - como não publicizar ações específicas ou culpar outros - e seus efeitos).
Assim, o Brasil chegou a 2021, ao final do segundo ano da maior pandemia dos últimos 100 anos, com o seguinte cenário em relação às crianças e adolescentes:
- aumento do número de mortes violentas intencionais,
- aumento da insegurança e incertezas em relação a renda desde o início da pandemia (bem como cobertura e valores a serem repassados pelo maior programa de transferência de renda do mundo - o Bolsa Família),
- diminuição da cobertura vacinal obrigatória de crianças e questionamentos sobre credibilidade de vacinas por lideranças políticas nacionais,
- nenhum avanço na diminuição na taxa de mortalidade na infância,
- taxa de mortalidade materna muito acima das metas internacionais
- aumento na desnutrição infantil (menores de 5 anos) - altura x idade,
- 51% de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos do Bolsa Família estudando menos de 2 horas por dia durante a pandemia (jul-nov/2020),
- 36% das crianças e adolescentes até 17 anos com renda per capita de até ¼ de salário mínimo sem acesso a internet,
- 43 milhões de estudantes acessando a escola pelo celular,
- desestruturação do sistema nacional de segurança alimentar e nutricional,
- suspensão do programa federal de educação integral voltado para o ensino fundamental
- políticas opostas à conservação ambiental, com os piores números de incêndios e desmatamentos dos últimos 20 anos, afetando de pior forma os mais vulneráveis, sobretudo crianças.
- extinção ou desestruturação de colegiados intersetoriais e interfederativos que tinham papel central na articulação para a implementação orquestrada das políticas públicas,
- corte e unificação orçamentária de todas as políticas da estrutura do atual ministério de direitos humanos em um único programa orçamentário, invisibilizando todos os grupos vulneráveis, bem como limitando os gastos da área específica voltada a crianças e adolescentes
- 2020 foi o ano com menos recursos para a educação básica do MEC desde 2010
- corte de recursos e da atuação da assistência social, que é a porta de entrada de grupos em situação de vulnerabilidade para acesso aos direitos sociais.
Ainda, em um momento em que há uma exigência mundial por maior presença do poder público, como epicentro para o planejamento e execução de ações estratégicas no período pós pandemia, o governo federal no Brasil assume papel inverso, utilizando métodos como a coerção, assédio, perseguição e afastamento de servidores públicos concursados e qualificados dos espaços de tomadas de decisões, centrais para garantir o bem estar da população.
Esse conjunto de fatores poderão trazer como consequência prejuízos intergeracionais de grande impacto, do ponto de vista ético, humano, social, político e econômico.
*Juliana Matoso Macedo é socióloga, doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília e ingressou na carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental em 2002.
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