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OPINIÃO

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Sem políticas públicas, o que será dos órfãos da COVID no Brasil?

Criança com máscara protetora espera ser testada para a doença de coronavírus (COVID-19) na Bela Vista do Jaraqui - BRUNO KELLY/REUTERS
Criança com máscara protetora espera ser testada para a doença de coronavírus (COVID-19) na Bela Vista do Jaraqui Imagem: BRUNO KELLY/REUTERS

Colunista do UOL

23/11/2021 10h40Atualizada em 23/11/2021 17h50

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Juliana Matoso Macedo*

A desarticulação, o corte no orçamento e o encerramento deliberado de políticas públicas para crianças e adolescentes projeta-lhes um futuro sombrio.

O número de crianças e adolescentes que ficaram órfãos na pandemia ainda é uma incógnita. As informações não são publicizadas e transparentes, impossibilitando ações efetivas por toda a sociedade junto ao Estado. O caso da educadora Mariza Lima, de Manaus, que morreu no dia 10 de fevereiro, deixando quatro filhos (incluindo um casal de gêmeos de apenas 2 meses) e uma família devastada ilustra a realidade de centenas de milhares de crianças pelo Brasil. Estima-se em torno de 168 mil casos de crianças órfãs dos seus cuidadores.

Esse grupo integra aqueles mais vulneráveis a riscos de diversas magnitudes, junto a pessoas com deficiência, mulheres, comunidade LGBTQi, negros e povos e comunidades tradicionais. Para que o bem-estar seja garantido a todos torna-se impositivo que as políticas públicas olhem prioritariamente para esses grupos, considerando o fator renda e raça como pano de fundo.

No mundo, são 2,2 bilhões de crianças e adolescentes, o que representa mais de 30% da população mundial. A América Latina é responsável por 8% desse total (180 milhões), sendo que 51% vivem em situação de pobreza (91 milhões) . No Brasil, essas somam 53 milhões (menos de 18 anos), integrando aproximadamente 40% das famílias. Há uma projeção de que, pelo menos, 18 milhões, de 0 a 14 anos, estejam em situação de pobreza ou extrema pobreza. Por outro lado, enquanto o grupo até os 17 anos representam 6% do total de mortes violentas intencionais, esse número sobe para 47%, quando consideramos a faixa entre 18 e 24 anos. Há mais de dois anos morrem 17 crianças e adolescentes por dia no Brasil por causas violentas!! E quando olhamos para os casos de estupro no país, esses se concentram entre os 10 e 13 anos de idade (83% dos estupros são ocasionados por conhecidos das vítimas).

Todo esse quadro tem cor, uma vez que 56% das crianças e adolescentes são negras (pretas ou pardas).

Nas últimas décadas uma série de políticas públicas federais e nacionais teve impactos diretos nas crianças e adolescentes, seguindo os preceitos da Constituição Federal de 1988, dentre as quais:

Para a implementação dessas políticas tornou-se indispensável a articulação entre os setores (ministérios) e com estados e municípios, caracterizando o que pode ser denominado como 'governança intersetorial multinível'.

As materializações dessas articulações se deram por meio dos comissões e fóruns de gestão, conferências e conselhos intersetoriais que reuniam representantes da sociedade civil e do poder público nos níveis federal , estadual e municipal para discutir as produções das políticas públicas, com conhecimento e a partir das demandas dos cidadãos.

Ainda havia muito o que avançar. Entretanto, a partir de 2016 mudanças contínuas passaram a configurar os espaços de implementação de tais políticas, sem ter como base evidências científicas. Essas envolveram desde desarticulações entre ministérios, passando pela total ausência de concertação nacional junto a estados e municípios e inanição das próprias políticas públicas. Por isso, o atual processo em curso no Brasil tem sido cada vez mais analisado sob a ótica do desmantelamento de políticas públicas (que levam em conta: preferências políticas; estruturas de oportunidades; estratégias utilizadas - como não publicizar ações específicas ou culpar outros - e seus efeitos).

Assim, o Brasil chegou a 2021, ao final do segundo ano da maior pandemia dos últimos 100 anos, com o seguinte cenário em relação às crianças e adolescentes:

Ainda, em um momento em que há uma exigência mundial por maior presença do poder público, como epicentro para o planejamento e execução de ações estratégicas no período pós pandemia, o governo federal no Brasil assume papel inverso, utilizando métodos como a coerção, assédio, perseguição e afastamento de servidores públicos concursados e qualificados dos espaços de tomadas de decisões, centrais para garantir o bem estar da população.

Esse conjunto de fatores poderão trazer como consequência prejuízos intergeracionais de grande impacto, do ponto de vista ético, humano, social, político e econômico.

*Juliana Matoso Macedo é socióloga, doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília e ingressou na carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental em 2002.