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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A dupla face da mídia brasileira

Pessoa assistindo televisão - iStock
Pessoa assistindo televisão Imagem: iStock

Colunista do UOL

18/12/2021 10h38

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Maria Rita Loureiro*

A Globo News, canal de TV da Rede Globo, mostrou há pouco cena de explícita censura à liberdade de expressão e de imprensa no país. O cientista político Fernando Abrucio, também colunista do Valor Econômico, jornal do mesmo grupo Globo, estava analisando perspectivas eleitorais dos candidatos a presidente da república no próximo ano, quando foi abruptamente interrompido pelo condutor do programa. Certamente recebendo ordens em seu ponto, o funcionário teve que formular de forma nada convincente uma desculpa e dispensar o convidado que não pode nem terminar o raciocínio.

O que levou a TV Globo a tomar essa atitude e revelar de forma tão clara sua prática de censura, semelhante a que conhecemos em regimes ditatoriais? E arriscar-se, como o fez, a desmascarar sua dupla face - de arauto da liberdade de imprensa para o grande público e, em suas coxias, praticante de censura?

O pesquisador analisava, de forma objetiva, informações relativas à disputa eleitoral, dizendo que os candidatos da chamada 3ª via não têm trazido questões que interessam aos eleitores, como crescimento econômico, emprego, menos inflação, melhor educação, serviços de saúde de qualidade. Até aí, ele estava sendo ouvido com atenção, mas, ao desdobrar seu raciocínio e afirmar que tal situação favorece bastante ao ex-presidente Lula - "porque a lembrança de seu governo é muito positiva e porque ele entende o que população mais pobre quer" - isso foi intolerável para a Globo. Intolerável porque ferem seus interesses privados e não trazem benefícios a seu candidato, Sergio Moro. Portanto, para a empresa, tais análises não podem ser divulgadas e precisam ser tiradas imediatamente do ar.

Mesmo sendo uma concessão pública, o poder e os interesses de seus donos (ou melhor, dos concessionários) é o que vale. E não importa o direito do cidadão de ser informado devidamente para melhor conhecer a realidade e confrontar diferentes perspectivas e análises de questões cruciais para sua vida e para o país.

A parcialidade disfarçada em independência e o partidarismo dissimulado por retóricas de pluralismo democrático explicam o que ocorreu na emissão da Globo News do dia14 de dezembro. Se dois dias depois, assustada com a repercussão negativa nas redes sociais da censura por ele praticada, a Globo News tenha convidado o mesmo analista político a voltar ao programa e concedendo-lhe um longo e excepcional tempo (mais de 30 minutos) para "falar o que quiser", isso não deve nos iludir. Alguns números mostram que o fenômeno é muito mais amplo e caracterizam de modo dominante os oligopólios midiáticos brasileiros, controlados por poucos grupos de empresas familiares.

Conforme levantamentos realizados pelo Manchetômetro, núcleo de pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, registrado no CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas), os três principais jornais do país - Folha, Estadão e Globo - publicaram 2.173 editoriais entre 2015 e 2018, sendo que destes, apenas 28 (1.2%) foram favoráveis a Lula, a quem sempre se opuseram ou apenas toleraram, quando Presidente da República. Em março de 2016, portanto em um único mês, no auge da campanha acirrada pelo impeachment de Dilma Roussef, aliada de Lula, estes jornais juntos publicaram também 114 matérias de "opinião" contrárias a ele e apenas nove favoráveis.

No Jornal Nacional, emissão televisiva de grande audiência, também da rede Globo, a parcialidade de uma concessão pública é ainda mais espantosa em um país que pretende ter instituições democráticas consolidadas. No período analisado pelos pesquisadores da UFRJ, foram computados mais de 163 mil minutos de reportagens contrárias a Lula, ou seja, cerca de 45 horas, se as matérias fossem apresentadas em sequência. Em contrapartida, apenas uma hora de reportagem no total foi favorável a ele.

Independentemente do apoio ou não a um determinado partido político e sua liderança, estes dados são significativos porque, juntamente com o episódio de censura da Globo News desta semana, desmontam o mito de uma imprensa independente e a falsa retórica destes veículos de comunicação pública que se autoproclamam defensores da liberdade de expressão. Eles nos mostram ainda a necessidade premente de que a luta pela retomada da democracia no país deve alcançar não só os poderes da República, mas também as instituições da sociedade civil. Sem o estabelecimento de regras justas e democráticas também para os meios de comunicação não conseguiremos superar a barbárie destes tempos tão sombrios.

*Maria Rita Loureiro é professora titular aposentada da USP e da FGV EAESP.