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Direito ao reparo, um movimento pelo direito de ser dono do que é seu.

Conserto de celular, smartphone - Getty Images/iStockphoto
Conserto de celular, smartphone Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

17/03/2022 08h00

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Tomaz Soares Canté*

Uma tela rachada, baterias viciadas ou componentes queimados, todas essas são situações comuns que experienciamos cada vez mais conforme novas tecnologias invadem a nossa rotina. Mas tudo bem, se uma coisa está quebrada, só nos resta consertar, certo?

Bem, se você já teve a infelicidade de precisar trocar o display de um smartphone moderno talvez já saiba que essa não é uma operação tão simples e muito menos barata. Não é incomum ouvirmos que "vale mais a pena pegar um novo" quando levamos algum equipamento que acabamos de comprar para a assistência e é justamente aí que entra a luta pelo direito ao reparo.

Como o próprio nome sugere, o movimento pelo direito ao reparo (ou right to repair) reivindica o direito de consertarmos os produtos que nós compramos. Talvez pareça estranho, afinal, você não precisa ir longe em uma cidade para achar uma assistência técnica ou loja de peças eletrônicas, mas o movimento tem ganhado força justamente pois cada vez mais as grandes fabricantes estão dificultando a vida desses negócios.

Não é difícil lembrar de um passado em que trocar a bateria de um celular era um procedimento simples que, no máximo, exigia unhas fortes para abrir a tampinha traseira do aparelho. As fabricantes alegam que essas mudanças são necessárias para garantir aparelhos mais leves, rápidos, finos e duradouros, mas até onde vai essa necessidade? É razoável que a substituição de um componente de um aparelho custe quase o mesmo preço que a aquisição de um novo?

Talvez essa conversa te faça lembrar de um caso antigo dos Estados Unidos, um vídeo viral de 2003 chamado "IPod's Dirty Secret" (o segredo sujo do Ipod, em tradução livre) já alertava para as práticas da Apple de vender dispositivos com uma baixa expectativa de vida e cuja manutenção era praticamente inviável. No caso do vídeo, a troca de uma bateria, que durava apenas 18 meses, sairia tão caro quanto a aquisição de um novo aparelho.

De 2003 até aqui não faltam exemplos de outras empresas seguindo os passos da gigante Apple e lançando produtos com decisões de design que dificultam ou impossibilitam o reparo, muitas vezes forçando o consumidor a comprar um novo produto quando o antigo está com defeito. Alguns exemplos são a utilização de parafusos pouco comuns e o uso exagerado de cola para selar o produto e até o posicionamento de componentes de forma que trocar algo simples como uma tela ou conector exija o seu desmonte quase completo.

Outra forma de dificultar o reparo é a não disponibilização de peças e partes do produto para o mercado independente. Se você entrar nesse momento no site da Samsung verá diversos anúncios para inúmeros produtos, mas não existe nenhum local em que você poderia comprar uma tela nova, por exemplo. Esse tipo de compra fica restrita a assistências autorizadas pela empresa que costumam cobrar um valor acima do mercado para realizar os serviços de reparo.

As grandes empresas do mundo da tecnologia alegam que essas são medidas necessárias para garantir eficiência, inovação e a segurança do consumidor. Os celulares são colados e difíceis de desmontar pois esse seria o jeito mais barato, eficiente e seguro. O reparo e a venda de peças é restrito a certas empresas parceiras para supostamente garantir a qualidade do serviço. Com certeza essas parecem justificativas sólidas, mas os militantes do movimento questionam se essas são realmente as intenções finais das fabricantes.

Não faltam relatos de produtos eletrônicos que, saindo de fábrica, apresentam falhas como sobreaquecimentos que levam até a incêndios, muito menos de reparos de baixa qualidade realizados em autorizadas, inclusive da Apple, a principal empresa que se opõe ao movimento. Da mesma forma, existem componentes perigosos em diversos produtos amplamente utilizados e mesmo assim os mesmos continuam a ser vendidos. Então fica a questão: essas práticas estão a benefício de quem?

Bem se a única instituição capaz de consertar seu produto é quem a fabricou ou alguém licenciado por ela, isso deixa o consumidor em uma situação de extrema fragilidade, afinal ele compra algo que deveria passar a ser propriedade dele, mas seu uso é chancelado por e depende de uma única empresa. Isso por si só já é um grande problema, mas fica ainda mais evidente quando pensamos no que acontece quando uma empresa para de prestar assistência para um produto, seja porque o mesmo está obsoleto ou porque a empresa faliu.

Um caso notório aconteceu recentemente nos Estados Unidos, quando uma empresa chamada Second Sight, especializada em implantes, descontinuou o suporte de implantes oculares e deixou mais de 300 pessoas cegas. A empresa estava enfrentando dificuldades financeiras e demitiu a maioria dos funcionários, tudo isso sem informar nenhum de seus clientes, que descobriram sobre a situação da pior maneira possível e agora possuíam implantes cerebrais obsoletos e sem suporte para futuros reparos.

Esse parece um caso extremo, mas, conforme as novas tecnologias vão se integrando em nossas vidas, são tópicos que precisam ser discutidos de forma ampla e democrática. Também é importante ressaltar o papel da legislação nesse processo e o movimento pelo direito ao reparo tem muita consciência de que, sem o apoio de leis bem estabelecidas, será muito difícil conseguir mudanças reais no cenário atual.

Um dos principais nomes do movimento é Louis Rossman, um americano que possui um negócio voltado ao reparo de produtos da Apple e também um canal no youtube no qual ensina como fazer esses reparos. Louis luta há anos pela causa do direito ao reparo e, com o apoio de outros nomes de peso da plataforma, tem juntado fundos para levar essa questão para o debate político norte-americano. Atualmente, sua campanha no go-fund me, uma plataforma de financiamento coletivo, já levantou por volta de 775 mil dólares. Existem, também, propostas de leis americanas voltadas ao direito ao reparo na indústria automobilística, a primeira sendo apresentada em 2001, no senado.

No Brasil esse é um assunto que tem entrado em destaque atualmente, mas já temos inclusive projetos de lei que tratam sobre o tema como o PL 6151/2019, de autoria do deputado Pedro Lucas Fernandes (PTB/MA), o PL 5421/2019 do deputado Silas Câmara (Republicanos/AM) e o PL 4892/2016 da deputada Clarissa Garotinho (PR/RJ). No senado também temos o PL 6478/2019 do senador José Maranhão (MDB/PB). Esses projetos focam na disponibilização de peças para a realização de reparos e tem como principais desafios questões como a dificuldade de se definir a "vida útil" de um produto e o tempo mínimo aceitável para que as fabricantes continuem disponibilizando essas peças.

Uma outra frente de ação, porém, vem surgindo lentamente. São empresas que criam seus produtos com o direito de reparo em mente. Exemplos claros são os notebooks da Framework e os celulares da Fairphone. Ambos são aparelhos modulares e com o objetivo de facilitar sua manutenção de forma que possa ser feito por qualquer pessoa minimamente experiente. As duas empresas também disponibilizam em seus sites peças sobressalentes e prometem continuar o suporte de seus produtos durante muitos anos.

As iniciativas dessas empresas também servem como contraponto aos argumentos das grandes empresas de tecnologia. Os notebooks da framework, apesar de mais caros que a média, são igualmente leves e potentes quanto a maioria de seus competidores. O Fairphone, por sua vez, é um pouco maior e mais pesado que os smartphones topo de linha atuais, mas está longe de ser um celular desconfortável ou impraticável.

Talvez o próximo passo para o poder público seja ir além da coibição de práticas que atentam contra a reparabilidade passar a incentivar iniciativas como essas. Produtos reparáveis, afinal, não são bons apenas para os consumidores que se veem limitados a assistência de uma única empresa, mas também para a sociedade como um todo já que geram uma quantidade muito menor de lixo eletrônico, cujo descarte correto é caro e trabalhoso e o descarte incorreto leva a danos consideráveis ao meio ambiente.

Com certeza esse ainda é um campo muito fértil para o debate. Economistas tem um prato cheio discutindo as externalidades positivas e negativas de produtos reparáveis ou não, além de como a má distribuição de informação impacta o negócio entre um consumidor e uma grande empresa que trata seu produto como uma caixa preta que não deve nunca ser aberta. Além disso, o direito ao reparo é visto por muitos como um primeiro passo para uma economia circular, além de ter um impacto importante para a proteção do meio ambiente.

Na esfera pública esse é um debate que levanta questões fundamentais sobre o direito à propriedade e os limites a grandes empresas e monopólios, especialmente conforme nossa dependência desses novos produtos se torna cada vez mais alarmante. Como tratamos nossos celulares e notebooks hoje pode vir a definir como vamos tratar amanhã as próteses, veículos e outras tecnologias que serão fundamentais para nosso dia-a-dia.

Por fim, vale ressaltar que a questão do reparo em países que não são grandes produtores de aparelhos eletrônicos complexos, como o Brasil, impacta de forma ainda mais forte o acesso a essas tecnologias e a direitos fundamentais. Após a pandemia observamos uma aceleração na transição para o atendimento digital em diversas esferas do governo. Computadores, celulares e internet se tornam fundamentais para pleno acesso a auxílios governamentais, agendamentos de consultas e muitos outros serviços, enquanto os smartphones mais baratos disponíveis no mercado nacional custam por volta de meio salário mínimo. Não faltam exemplos de engenhosidade, resiliência e até da famosa "gambiarra" por todo o país, dadas as ferramentas certas e o apoio institucional o mercado de reparos tem um grande potencial para criar ainda mais empregos e democratizar o acesso à tecnologia onde ela mais precisa.

*Tomaz Soares Canté é estudante de graduação do curso de Políticas Públicas da UFABC, Bacharel em Ciências e Humanidades pela mesma instituição e Técnico em Informática pelo IFSP. Estudo as interfaces entre tecnologia e política, com foco no seu impacto na classe trabalhadora,