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Diálogos Públicos

OPINIÃO

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O fim das políticas para as mulheres?

O Ministério da Mulher fará curso para formação de quadros femininos na política - Divulgação
O Ministério da Mulher fará curso para formação de quadros femininos na política Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

09/08/2022 04h00

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Carolina Pereira Tokarski*
Luana Pinheiro**
Ranna Mirthes Sousa Correa***

Políticas públicas para as mulheres existem para promover condições de equidade entre homens e mulheres no acesso a direitos e oportunidades. No Brasil, é possível falar na existência de iniciativas isoladas na gestão federal para as mulheres desde os anos 1980, mas é apenas a partir de meados dos anos 2000 que essas ações se avolumam passando a constituir uma política nacional para as mulheres. Desde 2015, contudo, essas políticas foram paralisadas e, desde 2019, vêm sendo progressivamente desmontadas no âmbito do Governo Federal. Será que estamos caminhando em direção ao fim das políticas para as mulheres no Brasil enquanto um arranjo coordenado de iniciativas multisetoriais?

Se olharmos para essas ações a partir do executivo federal e da literatura internacional que têm se detido a estudar o desmonte de políticas públicas, a resposta parece ser um triste sim.

Para entendermos melhor a forma como esse desmonte tem se dado, é possível analisarmos os acontecimentos em dois períodos distintos. O primeiro deles se caracteriza por um ciclo de estagnação e de retração do orçamento liquidado e das políticas executadas pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), que se verificou entre 2015 e 2018. A esse ciclo chamamos de "Estagnação da Política". Mas é a partir de 2019 que se pode falar em um efetivo "Desmonte das políticas para as mulheres no Brasil", movimento que marca o segundo período aqui analisado. Além da manutenção do rebaixamento hierárquico da pasta, que já teve status de ministério e hoje é apenas mais uma dentre as oito secretarias que integram o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), a SNPM retrocedeu a patamares orçamentários semelhantes aos anos de sua criação, no início dos anos 2000 e importantes políticas têm sido destruídas ou descontinuadas.

Além disso, instrumentos relevantes de gestão das políticas públicas para as mulheres foram destruídos, sendo importante destacar: o desmonte da capacidade de transversalização da equidade de gênero e da articulação das políticas para as mulheres junto a outros órgãos da Administração Pública Federal e entes subnacionais; a diminuição dos recursos humanos envolvidos na execução da política; e o esvaziamento de princípios indispensáveis para a construção da política para as mulheres no Brasil como a interseccionalidade com a questão racial, a busca pela equidade de gênero, e a incorporação da participação social em todas as etapas da política.

Entre 2003 e 2015, o orçamento autorizado da SNPM apresentou tendência de crescimento e o orçamento liquidado, ou seja, aquele que foi efetivamente investido em políticas públicas, além de crescente, manteve-se acima de R$100 milhões entre 2009 a 2014. O tumultuado ano de 2015 —ano em que o processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff foi aceito na Câmara dos Deputados— marcou uma reversão nessa tendência e, a partir de então, o orçamento liquidado retrocedeu a patamares similares aos do período de criação da SNPM. Em 2019 e 2020, como se pode ver no gráfico, o orçamento liquidado ficou pouco acima dos R$ 31 milhões, mesmo orçamento que foi executado em 2005 e 2006 (em valores reais). Em 2021, não apenas o orçamento liquidado caiu para R$ 23 milhões —equivalente aos valores encontrados no início dos anos 2000— como o montante autorizado para movimentação e empenho ao longo do ano foi menos da metade do que o valor de 2020. Esses valores correspondem a uma execução da ordem de cerca de 46%, 25% e 42% em cada um dos anos, indicando como a maior parte do orçamento autorizado para gasto, não foi executado pela Secretaria. É possível notar que no ano de 2020, período em que as mulheres foram um dos grupos mais fortemente impactados pelos efeitos da pandemia, houve até um aumento do orçamento autorizado (que no ano seguinte já se reduziu expressivamente) mas que não implicou em ampliação equivalente dos investimentos efetivos em políticas para as mulheres.

Orçamento autorizado e liquidado das políticas específicas para as mulheres no MMFDH - Brasil (2019 a 2021)

(Em R$ 1 mil)

Fonte: Siop/ME.
Elaboração das autoras.
Obs.: Valores deflacionados pelo INPC médio de 2021.

Se, em 2020, estivemos diante de uma trágica combinação entre crise econômica e sanitária, para as brasileiras este cenário foi ainda mais desafiador, seja no que diz respeito aos impactos sobre o mercado de trabalho e o trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, seja em relação à violência doméstica e familiar. A partir desse ano, as mulheres passaram a vivenciar uma explosão de casos letais e não letais de violência doméstica. Publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que reuniu dados relativos à violência letal e sexual de meninas e mulheres no Brasil a partir dos boletins de ocorrência das Polícias Civis das 27 Unidades da Federação, mostrou que no ano de 2021 uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas, em média.

A pandemia de covid-19 tornou o enfrentamento a esse tipo de violência ainda mais difícil, uma vez que as mulheres passaram a conviver mais tempo com seus agressores, houve uma perda de renda familiar, aumento das tensões dentro de casa e mais dificuldade na realização de denúncias por conta do isolamento social. Paradoxalmente ao agravamento da violência contra as mulheres, nos últimos anos uma das principais políticas alardeadas pelo governo como instrumento de enfrentamento à violência doméstica, a Casa da Mulher Brasileira, não foi tirada do papel. O Relatório de Gestão do MMFDH de 2019 previu a construção de 25 novas unidades do equipamento até 2020, e, por sua vez, o relatório de 2020 previu a construção de 25 novas unidades até 2022. No entanto, o que efetivamente foi realizado foi a transferência da unidade da Casa da Mulher Brasileira do Distrito Federal, que ficava localizada no Plano Piloto e teve a obra interditada em 2018, para a Região Administrativa de Ceilândia em 2021. Nenhuma unidade nova foi construída em todo o território nacional e o orçamento efetivamente liquidado para a construção de novas Casas da Mulher Brasileira foi praticamente nulo entre os anos de 2019 e 2021. Vale destacar que, nesses três anos, os recursos financeiros destinados para as políticas para as mulheres foram basicamente executados na manutenção da Central do Ligue 180, pois representaram 96% do total dos recursos liquidados nos anos de 2019 e 2021 e 74% em 2020. Isso significa que todo o conjunto de políticas que vinham sendo realizadas em diferentes dimensões da vida das brasileiras como o enfrentamento à violência doméstica, a autonomia econômica, a saúde, a educação e a inserção de mulheres e meninas na ciência, simplesmente deixaram de existir.

Além da capacidade de executar o orçamento, a SNPM também tem perdido sua capacidade, como órgão central das políticas para as mulheres, de transversalizar essas ações pelos governos, ou seja, de dialogar e pactuar com outros órgãos, tanto na Administração Pública Federal quanto nos organismos de políticas para as mulheres nos estados e municípios, estratégias e políticas construídas a partir da lente da equidade entre mulheres e homens. Diferentes estratégias que vinham sendo utilizadas para esta pactuação e transversalização foram desmontadas: a última Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi realizada no ano de 2016, o último Plano Nacional de Políticas para as Mulheres teve vigência até o ano de 2015 e o componente de gênero ou mulher deixou de ser transversalizado no âmbito do Plano Plurianual (PPA 2020-2023).

Desde 2003, quando a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) foi criada, com status de ministério, o tema da igualdade de gênero vinha entrando de forma mais relevante na agenda pública. Ainda que com muitas limitações e problemas, importantes conquistas foram alcançadas, como a Lei Maria da Penha, a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, a ampliação do número de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência e a implementação de três Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, que envolviam diversos ministérios na execução de um grande conjunto de ações nas áreas de educação, saúde, trabalho, entre outras. Tornou-se possível falar em uma política nacional para as mulheres, mesmo que esta ainda carecesse de instrumentos que a dessem maior sustentação e estabilidade, como normativos, orçamento e pessoal próprio.

Tal fragilidade se evidenciou nos últimos anos, quando o processo de desmonte se instalou e rapidamente suspendeu ou encerrou importantes ações que vinham sendo desenvolvidas. Contudo, mesmo direitos e conquistas mais consolidados e "protegidos" até mesmo em termos normativos também têm sido ameaçados e questionados, em especial a partir de 2019. Exemplo desta situação é o entendimento contido em Cartilha publicada pelo Ministério da Saúde para profissionais e serviços de saúde que sugere a investigação criminal das mulheres que interromperem a gravidez mesmo nas hipóteses legais de risco à morte materna e decorrente de estupro - previstas em lei desde 1940 - e na gestação de feto anencéfalo, autorizada pelo STF desde 2012.

A lição que se tira da experiência dos últimos anos é que é sempre possível retroceder quando se trata de políticas para a igualdade de gênero. Não importa o quanto se tenha caminhado, o quanto as políticas reflitam demandas dos movimentos de mulheres e expressem conquistas de toda a sociedade, essa é uma agenda sujeita a chuvas e trovoadas. A pauta de gênero serviu de moeda de troca durante a luta política no processo de impeachment, em 2015, ano em que a Secretaria de Políticas para as Mulheres perdeu seu status ministerial e espaço e prestígio político. A pauta de gênero segue agora servindo como uma fiadora moral da agenda conservadora do governo em curso, sendo constantemente utilizada pelas autoridades para reforçarem perante sua base política valores como a defesa da família (desde que nuclear e heteronormativa) e da vida "desde a concepção" (como previsto no site do MMFDH), a defesa de papéis tradicionais e conservadores para homens e mulheres, o combate à "ideologia de gênero" e o enfrentamento e desprezo às pautas feministas.

Os últimos oito anos, e de forma mais acentuada os últimos três, têm sido desafiadores para as mulheres brasileiras e para aqueles e aquelas que continuamente têm trabalhado em prol da construção de um Estado que incorpore à sua missão, de forma permanente, a agenda da igualdade entre homens e mulheres. A história não é linear, ela é feita de ciclos, com avanços e retrocessos. A reconstrução de uma política para as mulheres precisa caminhar junto a um entendimento da sociedade e dos governos de que os direitos das mulheres são "inalienáveis e constituem parte integral e indivisíveis dos direitos humanos universais".

*Carolina Pereira Tokarski é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, mestra em direito pela UnB.

**Luana Simões Pinheiro é doutora em sociologia pela UnB.

***Ranna Mirthes Sousa Correa é doutoranda em antropologia pela UFRGS.

****Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.