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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O Auxílio Brasil e a frequência escolar

crianças; escola - iStock
crianças; escola Imagem: iStock

Colunista do UOL

24/08/2022 04h00

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Juliana Matoso Macedo *
Daniel de AquinoXimenes **

O Programa Bolsa Família foi criado a partir de uma trajetória institucional que remete a programas anteriores como o Bolsa Escola. A ideia por trás é a de que nenhuma família em um país pode viver sem o mínimo de condições para o acesso a direitos sociais básicos, como alimentação, moradia, educação e saúde, sobretudo quando contam com crianças e adolescentes. Para tanto, os chamados programas de transferência de renda fazem parte da proteção social de um país, de forma que as famílias em situação de pobreza tenham o mínimo de dinheiro para aliviar sua condição de forte instabilidade financeira, por questões alheias à sua vontade. E como estratégia de apoio ao direito à educação, foram criados, junto aos programas de transferência de renda, condicionantes para que as famílias tivessem continuidade no recebimento do dinheiro, dentre elas, a frequência assídua de crianças e adolescentes à escola.

Entretanto, para realizar a transferência de dinheiro e o acompanhamento escolar de crianças e adolescentes em situação de pobreza, o trabalho não foi nada fácil. Junto ao histórico institucional, que permitiu aprender com erros e acertos sobre o que se fazia no Brasil e em outros países, foram sistematicamente realizados vários aperfeiçoamentos. Com isso, passamos de programas municipais de transferência de renda e do Bolsa Escola nos anos 90, para o Programa Bolsa Família no século XXI.

O mecanismo do Bolsa Família que atrelava o repasse de dinheiro ao acesso a serviços de saúde e educação é chamado de ?condicionalidade?, ou seja, o recebimento contínuo do dinheiro pelas famílias estava condicionado, entre outros, a: gestantes estarem com o pré-natal atualizado; crianças com menos de 7 anos estarem com a vacinação e acompanhamento pediátrico em dia, bem como a assiduidade na frequência escolar de crianças e adolescentes. As condicionalidades são alvo de várias discussões, inclusive entre especialistas, sobre o direito das famílias receberem o dinheiro independente das crianças e adolescentes estarem ou não faltando determinada quantidade de aulas por mês. Afinal, as famílias de classe média e alta não têm condicionalidades para receber a restituição do Imposto de Renda. Por outro lado, há um entendimento de que as crianças e adolescentes de famílias em situação de pobreza estão mais vulneráveis a não conseguirem acessar esses direitos, por diversos motivos, desde a primeira infância. Diferente da ideia de punição, a condicionalidade da educação no Bolsa Família era uma estratégia de apoio para ingresso e permanência na escola, como garantia de direito, em um trabalho articulado entre a área da educação e outras, principalmente a assistência social.

Para conseguir saber, em tempo quase real, quais são as famílias com renda abaixo da linha de pobreza, transferir o dinheiro e identificar as crianças e adolescentes dessas famílias e, ainda, conseguir fazer o acompanhamento delas na saúde e educação, uma a uma, em um país do tamanho do Brasil, é necessário um trabalho gigantesco. Estão envolvidos nessa operação intersetorial e federativa, três grandes ministérios, responsáveis pelas áreas de educação, saúde e assistência social, bem como secretarias municipais e estaduais destas áreas, em todo o país. Em relação à educação, estamos falando de aproximadamente 3 milhões de crianças na pré-escola e de quase 20 milhões cursando ensino fundamental e médio para acompanhamento da frequência escolar. Trata-se de uma implementação institucional complexa, iniciada pelo Bolsa Família em 2004.

A complexidade da implementação das condicionalidades é notada pela chamada ?interoperabilidade de informações das famílias?, nas três áreas interligadas de atuação: assistência social, saúde e educação. As melhorias para obter as informações robustas de maneira adequada, permitindo a articulação com outros serviços, foram sendo realizadas ao longo do tempo, desde 2004. Quanto ao acompanhamento das condicionalidades, os ministérios desenvolveram sistemas para apoio à coleta das informações. No Ministério da Saúde, o Sistema Bolsa Família na Saúde registra as informações, no Ministério da Educação, o Sistema Presença faz esse trabalho, e no Ministério responsável pela assistência social, o Sistema de Condicionalidades - Sicon - é o sistema que permitiu a consolidação de todas essas informações.

No caso do Programa Bolsa Família, o acompanhamento da frequência escolar das crianças e adolescentes seguia as seguintes regras, ou condicionalidades: crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos tinham que frequentar pelo menos 85% das aulas mensais; e os adolescentes entre 15 e 17 anos pelo menos 75%. Recentemente, o atual Programa Auxílio Brasil estendeu o acompanhamento da frequência escolar mensal para a faixa de 4 a 21 anos, sendo exigida a frequência de 60% para as crianças de 4 e 5 anos, e alterando para 75% de 6 anos até 21 anos incompletos. Porém, ainda não conseguiu implementar o acompanhamento das condicionalidades, devido a problemas técnicos persistentes e não devidamente resolvidos no Sistema Presença, fruto da enorme desarticulação no setor educacional no nível federal.

Depois de dois anos críticos de pandemia, esperava-se que o acompanhamento das condicionalidades de educação fosse retomado com força em 2022, como estratégia fundamental de apoio à busca e permanência na escola. Porém, não é o que está acontecendo na atual gestão do MEC. Devido a inconsistências técnicas e operacionais do Sistema Presença, o MEC decidiu desconsiderar o resultado que já tinha sido coletado e registrado da frequência escolar do primeiro período de acompanhamento de 2022 (fevereiro e março), gerando indicativos de que desconsiderará os dados de todo o primeiro semestre de 2022. Desperdício de recursos públicos e frustração, uma vez que o acompanhamento da frequência escolar é um instrumento fundamental de apoio à retomada da educação pós pandemia, especialmente junto à população mais vulnerável.

O acompanhamento da condicionalidade de educação traz resultados muito positivos no combate ao abandono escolar e no reforço ao aprendizado e aprovação. Estudo sobre avanços e desafios das condicionalidades de educação aponta que este grupo acompanhado teve menores taxas de abandono escolar e melhores resultados de aprovação do que quem era de escola públicas mas não pertencia ao Bolsa Família. Mais do que nunca, por conta dos efeitos nefastos que o período da pandemia de Covid-19 trouxe na permanência escolar e aprendizagem, é fundamental que o trabalho da condicionalidade de educação seja retomado com qualidade, o que infelizmente não vem acontecendo atualmente.

* Juliana Matoso Macedo - da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental; Doutoranda em Ciência Política pela UnB; ex-Coordenadora Geral no Programa Bolsa Família

** Daniel de Aquino Ximenes - da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental; Doutor em Sociologia pela UnB; docente do Mestrado na ENAP; ex-Diretor de Condicionalidades do Programa Bolsa Família

*** Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.