Topo

Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não falamos da corrupção! Não, não, não!

Mirabel e Bruno, de "Encanto", dublados originalmente por Stephanie Beatriz e John Leguizamo - Walt Disney Animation Studios/Divulgação
Mirabel e Bruno, de "Encanto", dublados originalmente por Stephanie Beatriz e John Leguizamo Imagem: Walt Disney Animation Studios/Divulgação

Colunista do UOL

26/09/2022 09h21

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Doutor em Políticas Públicas e pesquisador do IESC/UFRJ

De forma surpreendente, a animação dos estúdios Disney "Encanto", lançada em 2021, dirigida por Byron Howard e Jared Bush, estourou nas paradas de sucesso com a música "Não falamos do Bruno", composição do também ator Lin-Manuel Miranda, e que ficou no topo das músicas mais ouvidas do ranking Hot 100 da Billboard, pela incrível marca de mais de três semanas não consecutivas.

Caso o leitor não tenha visto essa película de fantasia, ambientada na Colômbia, e com diversos aspectos interessantes nas entrelinhas, recomendo fortemente. Haverá spoilers nesse texto! Mas, voltando a falar de Bruno, a música trata de um personagem da trama que tem o dom de prever o futuro e pelas verdades que ele apresenta em suas previsões, começa a se tornar uma presença indigesta.

E após um momento de inflexão (vejam o filme e entenderão), ele se recolhe, em um quase banimento, para o porão da sua própria casa, e a sua família inventa uma história de cobertura sobre a sua partida. Mas na verdade todos sabem que ele se esconde ali, vivendo de restos, como mostra claramente a letra da música. Bruno vira a personificação de um tabu.

Mas, esse texto se destina a um espaço de discussão de políticas públicas. Não deveria estar na crítica de cinema? Perguntaria algum leitor nesse trecho da narrativa. Sim, mas de produções como essa, é possível se colher muita coisa do intertexto, e que pode se aplicar a temas diversos e relacionados as políticas públicas, inclusive a badalada questão da corrupção.

Sim, a corrupção, com a devida vênia, é o nosso Bruno (que é um baita personagem, diga-se de passagem). Mostra o pior de nós, aquilo que somos capazes de fazer na quebra das relações que geram prejuízo à sociedade. Mas ao mesmo tempo, é tida como um tabu, um assunto que não se comenta, no máximo no abstrato, em relação ao outro fictício. Como na canção: Não falamos da corrupção! Não, não, não!

Não falar de uma questão, ainda mais a corrupção, intrínseca nas relações humanas desde o início da civilização, não faz ela desaparecer. Pelo contrário! Mantém ela em uma zona oculta na qual ela atua, cresce e se enraíza, afetando assim a vida de todos. Sem admitir a existência de corrupção nas relações entre os governos, as empresas e a população beneficiária das políticas públicas, não é possível o estabelecimento de estratégias efetivas para a sua redução.

É verdade, a corrupção sempre habitou as páginas de jornal, seja na parte da política, como na seção policial. Mas, sempre como algo deplorável a ser combatido, que causa rostos ruborizados e espantos cotidianos. Figurinha fácil também no jogo político eleitoral, ao cabo, essa forma generalizada de tratar o fenômeno da corrupção, com a espetacularização do escândalo, contribui mais com a perda de confiança na sociedade, nos governos e nas empresas, do que com a sua efetiva mitigação.

A corrupção, entendida como um abuso de poder, que quebra as relações do poder público com as suas partes, alterando finalidades para interesses pessoais e prejudicando interesses coletivos, deriva da delegação entre os atores, e da capacidade destes de fazerem coisas não pactuadas para o benefício próprio. Essa possibilidade permeia todas as relações da sociedade, e para se manifestar depende de um conjunto de fatores relacionados aqueles indivíduos e ao sistema no qual eles estão inseridos, entremeando questões subjetivas e estruturais.

Sob a égide da Constituição, o processo eleitoral delega, direta ou indiretamente, a condução das questões coletivas a representantes eleitos, e estes interagem com servidores da burocracia escolhidos por meio de processos objetivos de concursos e encarreiramento, e todos esses interagem por meio de políticas públicas frente a sociedade e seus diversos estratos, em um jogo de delegações e prestações de contas típico do ambiente democrático, no qual a corrupção é uma das ameaças mais relevantes.

Um desenho de relações e deveres entre atores, que necessitam de accountability, ou seja, de mecanismos que os façam serem responsivos em suas interações, para mitigar as chances de atuarem em interesse próprio, deturpando o atendimento à interesses coletivos. Um arco de possibilidades que só pode se extinguir se cessarem as relações e delegações, o que torna impossível a vida em coletividade. A corrupção é algo crônico e teremos que conviver com esta na vida social.

Frente a essa possibilidade imanente de corrupção, surgem mecanismos para mitigá-la. A ética, a imprensa livre, a lei, os órgãos de controle, a transparência, a participação social, são exemplos de estruturas formais e informais que desenvolvemos ao longo da história, e que adotamos para mitigar essas quebras de relação, em uma visão bem institucionalista do tema.

Uma visão, inclusive, na qual falar de "corrupção zero" como uma meta factível é totalmente dissociado da realidade. A anticorrupção não é uma viagem a uma ilha paradisíaca, e sim uma luta constante do navio para atravessar uma tormenta. Uma visão dinâmica, de trabalho e vigilância constantes, e não uma batalha contra um inimigo delimitado, que será derrotado ao final.

Entretanto, é difícil falar nisso. Um tema árido, fazendo com que a corrupção seja o nosso Bruno, que nos mostra o nosso lado pior que não queremos ver, mas que está lá, vivo e saltitante. Diante do horror do Bruno, o "ser abismal", é preferível confiná-lo ao porão, entre a negação do que todos sabem e a ojeriza irracional, que também é uma medida de negação.

O Brasil do Século XXI vive, progressivamente, um processo de quebra desse tabu, no qual a corrupção sai do canto escuro da negação, da existência apenas no mundo do outro, para subir de forma vertiginosa para a centralidade das discussões, permeando causas e consequências de tudo que envolve as políticas públicas. Sai do ostracismo de livros acadêmicos diretamente para o totalizante do botequim e das conversas cotidianas.

Nessa transmutação, a corrupção pula das páginas policiais e de política para uma gramática que poderia bem colocá-la na página de esportes. Uma visão na qual se tenta comparar graus de corrupção, se superestima o altruísmo como solução, e a corrupção passa a ser não uma possibilidade, mas um atributo derivado unicamente de aspectos morais relacionados as escolhas individuais dos agentes públicos. O Bruno sai do porão para ser jogado na fogueira, entre gritos de uma multidão portando foices.

É preciso conciliar visões, enxergando a corrupção com a complexidade que esse fenômeno reclama. Tentar entender a sua raiz a luz de pressupostos robustos, e a academia pode contribuir muito com isso, diminuindo a invisibilidade desse tema nas discussões da economia, da ciência política e do campo de públicas, ponderando e questionando diagnósticos e receituários hegemônicos, muitos deles ancorados em paradigmas difusos e que não se comunicam com a realidade.

No filme "Encanto", a doce protagonista Mirabel só equaciona a crise que afetava a sua família e a relação com aquela comunidade quando, rompendo o tabu, vai ao encontro de Bruno, para entender o que se sucedeu e o que pode ser feito para evitar a catástrofe. O que se dá pela reconstrução das relações, na inauguração de um ciclo virtuoso. A mazela da corrupção também necessita de uma abordagem mais racional, que a enxergue como uma possibilidade que, para ser enfrentada, precisa ser entendida e contextualizada, inclusive em relação as políticas públicas.

Países com uma trajetória de sucesso na questão da corrupção investem em pesquisa sobre o tema, no desenvolvimento de normas, no fortalecimento de órgãos de controle, bem como de mecanismos democráticos de transparência e participação social. E mais ainda, sabem que essa questão é intrínseca às relações sociais, e que precisa ser enfrentada, sem desprezar que ela deriva de um contexto, que não pode ser desconsiderado nas discussões sobre a magnitude da corrupção, bem como dos meios para combatê-la.