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Transporte sem tarifas: da garantia do voto ao exercício da liberdade
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Lucas Landin
Nesta terça-feira (18), o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso autorizou que prefeituras possam oferecer, de forma voluntária, um serviço de transporte público gratuito que garanta o deslocamento de eleitores no dia do segundo turno das eleições, marcados para o próximo 30 de outubro.
Com a decisão, os chefes de governos locais ficam isentos de eventuais responsabilizações, isto é, de serem imputados em ações de improbidade administrativa, caso implementem a prática. A medida tem como objetivo viabilizar a garantia constitucional do direito ao voto, e, entre os argumentos do ministro, a decisão se justifica tendo em vista o empobrecimento da população e a obrigatoriedade do voto.
A decisão de Barroso é inédita, já que ela reconhece que há uma barreira entre o acesso ao sistema de transporte público urbano e o cidadão: a tarifa. Essa barreira é expressa, inclusive, fisicamente, com a presença de catracas, cobradores e fiscais. A presença de tarifas cada vez mais caras separa o cidadão, sobretudo aquele mais vulnerável, de exercer seus direitos garantidos pela Constituição. No caso do voto, em muitos municípios, chega a ser financeiramente mais atrativo não ir às urnas do que tomar um ônibus para ir e voltar do local de votação. Se a multa está fixada em R$ 3,51, o ir e vir em uma cidade como Curitiba, por exemplo, representa R$ 11 (considerando apenas uma viagem de ida e uma volta).
Neste contexto, a decisão do ministro é, sem sombra de dúvidas, um grande avanço. Historicamente, o Brasil deixou de lado a questão do acesso ao transporte público, preferindo manter o foco total em discussões de caráter técnico, mais seduzentes do ponto de vista eleitoral. Fomos nos acostumando a ver, em ano de eleições, debates acerca do melhor modal de transporte a ser construído, que pode ser uma linha de metrô, um corredor de ônibus, ou um faraônico e caricato aerotrem, imortalizado por Levi Fidelix. Também nos acostumamos com as promessas sobre quais setores das cidades esses modais beneficiariam. Em São Paulo, a construção de um corredor de ônibus na estrada de M'Boi Mirim, assim como o metrô de Cidade Tiradentes, ambos no extremo da periferia, já viraram figurinha carimbada de programas políticos.
Seria realmente ótimo se Cidade Tiradentes, localizado a quase 30 km de distância da avenida Faria Lima e do centro financeiro da cidade, contasse com uma linha de metrô. Mas a população daquela região terá de fato o direito de usar esse metrô para algo mais que ir e voltar do trabalho? Se por um lado o deslocamento casa-ofício é subsidiado pelo vale-transporte garantido em lei, o acesso a outros deslocamentos também importantes não possui nenhum subsídio.
Como bem aponta a literatura sobre o tema, e nomes como Lúcio Gregori, o transporte público brasileiro foi construído sob uma lógica onde esse serviço não existe para servir ao cidadão, mas sim, para dele se servir. Se a quantidade de tarifa arrecadada é o fator determinante para garantir o itinerário e o horário nos quais os ônibus irão trafegar, podemos inferir que o transporte tem como fim maior arrecadação, e não a validação do direito de ir e vir.
Após os protestos de junho de 2013, que tiveram as tarifas e a ineficiência do transporte como estopim, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 90/15, de autoria da deputada federal Luiza Erundina. Com essa emenda, o transporte passou a integrar o rol de direitos sociais básicos garantidos pelo artigo 6º da Constituição. Mas para a imensa população urbana brasileira (85% do país vive em zonas urbanas, de acordo com o IBGE), o transporte ainda representa cerca de 18% de seus gastos mensais, a segunda maior despesa familiar de acordo com os dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua. Como pouca coisa mudou, a tarifa de transporte ainda continua sendo um muro entre os cidadãos brasileiros e seus direitos garantidos pela Carta Magna.
Se é bem verdade que o transporte público é fundamental para que o cidadão possa exercer o seu direito constitucional ao voto, como argumenta o ministro Barroso, é igualmente verdade que o transporte também é fundamental para que o cidadão acesse outros direitos constitucionais, que serão garantidos por intermédio de equipamentos públicos ou privados espalhados pela cidade.
Um desses direitos é a educação. Ainda que algumas cidades disponham de leis e programas de passe livre estudantil, essas ações não são respaldadas por nenhuma iniciativa similar de âmbito federal. Ter que pagar para chegar a um bom estabelecimento de ensino pode ser um inibidor para muitos conseguirem se capacitar em cursos técnicos, de idiomas, e até mesmo cursinhos pré-vestibulares e o próprio ensino superior. Algo similar acontece com a saúde. Em grandes regiões metropolitanas e áreas conurbadas, a tarifa pode ser um inibidor para que o cidadão realize um tratamento de saúde contínuo em outro bairro ou cidade próxima.
Outro direito constitucional muito prejudicado com a presença de tarifas, e provavelmente o mais negligenciado, é o lazer. Em cidades desiguais como as brasileiras, onde a presença de bons equipamentos como teatros, museus, cinemas, parques e centros esportivos são concentrados em áreas nobres, muitas vezes bem distante de periferias, desfrutar desses equipamentos de lazer é quase que um luxo, ainda que eles sejam de acesso público e gratuito. Quando o metrô finalmente chegar à Cidade Tiradentes, por exemplo, o morador daquela região poderá se deslocar mais rápido ao parque do Ibirapuera, o mais famoso da cidade. Porém, para uma família de um casal e três filhos maiores de 6 anos, uma simples ida e volta ao parque público representaria uma despesa de R$ 44, o que inibiria o passeio.
Até aqui, foram citados apenas exemplos urbanos. Nas zonas rurais do país, o transporte representa cerca de 20% dos gastos mensais das famílias, número ainda maior do que o observado nas áreas urbanas, também de acordo com os dados de 2019 da PNAD Contínua. Como as distâncias encontradas num contexto rural são maiores, o potencial de exclusão de um transporte tarifado também é maior, dificultando o acesso a serviços ainda mais básicos, como um cartório ou registro civil.
Portanto, é urgente que o acesso ao transporte público entre de vez na agenda dos próximos governantes eleitos. E não, ninguém está falando de estatizar todo o sistema e muito menos de explodir as contas públicas. A pesquisadora belga Marijke Vermander contabilizou que, até ano passado, 30 municípios brasileiros já haviam adotado um programa de fare-free public transport, ou seja, tarifa zero para todos no transporte público. Em algumas dessas experiências, como em Vargem Grande Paulista, exemplo pelo qual estou me debruçando em minha tese de mestrado, o transporte continua sob concessão privada, mas com uma lógica distinta de remuneração, onde a concessionária recebe da prefeitura por km rodado pelos ônibus, e não por cada tarifa paga pelo cidadão. Adotando outras fontes de financiamento, como a adoção de uma taxa substituta do vale-transporte, paga pelo empregador, Vargem Grande aboliu as tarifas da vida do usuário, garantiu o acesso de todos ao sistema, e aumentou a utilização do transporte pelos cidadãos.
Com acesso livre ao transporte, o sistema teve de absorver uma demanda represada: mais pessoas passaram a utilizar o comércio e os serviços públicos locais. A prefeitura começou a notar um maior número de inscritos em cursos de capacitação e, até mesmo, em atendimentos de saúde. Portanto, antes da gratuidade universal no transporte, os cidadãos não podiam gozar plenamente do seu direito de ir e vir, tendo a liberdade cerceada pela tributação no deslocamento. Os empregadores, por outro lado, aprovaram o modelo de financiamento: pagar a taxa que substituiu o vale-transporte acabou saindo mais em conta, e os comerciantes ainda tiveram um aumento em suas vendas, oriundo da maior circulação de pessoas pelo território.
Por isso, a decisão de Barroso deve ser comemorada por aqueles que defendem o acesso de todos os brasileiros, sem discriminação, ao sistema público de transporte. Se achamos inaceitável a instalação de uma catraca nas entradas de uma escola pública ou de um posto de saúde, liberando o acesso apenas para o cidadão que puder pagar uma tarifa, é nosso dever questionar o atual modelo de transporte público vigente no país, tal como a falácia de que este sistema é o único possível, e que não há espaços para melhorá-lo.
Lucas Landin é pesquisador de gestão municipal, orçamento público e transportes, mestrando em Gestão e Políticas Públicas pela Universidade do Chile.
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