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Diogo Schelp

Nenhum estudo será capaz de derrubar a crença cega na hidroxicloroquina

Jair Bolsonaro mostra caixa de hidroxicloroquina para uma ema, do lado de fora do Palácio da Alvorada - REUTERS/Adriano Machado
Jair Bolsonaro mostra caixa de hidroxicloroquina para uma ema, do lado de fora do Palácio da Alvorada Imagem: REUTERS/Adriano Machado

Colunista do UOL

26/07/2020 12h48

A prescrição da hidroxicloroquina para pacientes com covid-19 tem recebido defesas enfáticas do Ministério da Saúde, de alguns médicos afoitos e do presidente da República.

Profissionais de saúde e jornalistas que optam por uma postura cautelosa preferem referir-se à hidroxicloroquina, um derivado da cloroquina, como medicamento "sem eficácia comprovada" ou "sem amparo em evidências científicas" contra covid-19.

Essas expressões indicam dúvida sobre a utilidade da hidroxicloroquina no tratamento da doença causada pelo novo coronavírus. Elas passam a ideia de que o remédio pode ou não funcionar.

Essa dúvida incentiva a automedicação, dá margem ao uso político da droga ("por que não usá-la?", já disse Bolsonaro, que desde o início apresenta a hidroxicloroquina como a solução milagrosa para a pandemia) e leva à pressão de familiares para que os médicos a prescrevam para pacientes com covid-19. A observação de que receitar remédios sem eficácia comprovada pode ser pior do que não fazê-lo, por causa dos efeitos adversos, é ignorada.

Chegou a hora de mudar a linguagem para se referir à hidroxicloroquina.

Não cabe à ciência provar a ineficácia de um medicamento, mas sim a sua eficácia. Enquanto não são encontradas evidências concretas de que uma droga é capaz de curar ou melhorar o quadro clínico de um paciente, ela deve ser tratada como não eficaz.

Os melhores ensaios clínicos já realizados até agora — inclusive o mais recente, feito em 55 hospitais brasileiros — não conseguiram provar a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.

A isso se dá o nome de ônus da prova. Ou seja, em ciência, parte-se primeiro da inexistência de um fato (no caso, a inexistência de eficácia da hidroxicloroquina contra a covid-19). A existência só é construída com evidências colhidas por meio do método científico.

Ou seja, enquanto não existirem evidências obtidas por meio de estudos bem conduzidos, a hipótese de que a hidroxicloroquina funciona no tratamento da covid-19 deve ser considerada nula.

Por isso, não cabe dizer que a hidroxicloroquina é um medicamento "sem eficácia comprovada" contra a doença causada pelo novo coronavírus. O mais adequado, enquanto não se provar o contrário, é dizer que a hidroxicloroquina não é eficaz contra a covid-19. E ponto.

A expressão "sem comprovação científica" parece inverter o ônus da prova. Passa a impressão de que há uma probabilidade de o remédio ser eficaz. Deveria ser o contrário: a probabilidade de eficácia é inexistente enquanto não houver evidências de que existe.

A inversão do ônus da prova

Realizada com 665 pessoas hospitalizadas com sintomas leves ou moderados da doença, a pesquisa da Coalizão Covid-19 Brasil publicada no respeitado The New England Journal of Medicine chegou à conclusão de que o grupo de pacientes que recebeu placebo (pílulas de farinha, sem efeito algum), teve uma recuperação equivalente à dos grupos que tomaram hidroxicloroquina ou hidroxicloroquina em combinação com o antibiótico azitromicina. Ou seja, não houve diferença significativa no status clínico dos pacientes dos três grupos.

De maneira mais simples e direta: a hidroxicloroquina, seja ministrada isoladamente ou com azitromicina, não se mostrou um remédio eficaz contra covid-19.

Ainda assim, o Ministério da Saúde se recusa a mudar o seu protocolo para a prescrição do medicamento, com o argumento de que foram usados critérios diferentes do que seriam os estágios leves, moderados ou graves da doença.

O protocolo do Ministério da Saúde recomenda cloroquina e hidroxicloroquina desde o primeiro até o décimo quarto dia de sintomas leves ou moderados e em qualquer fase de sintomas graves. O secretário de ciência e tecnologia do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Neto, diz que o que o ensaio clínico feito pelos hospitais brasileiros classifica como sintomas leves ou moderados é considerado estado grave pelo protocolo do governo.

A declaração do secretário é um clássico exemplo de inversão do ônus da prova: um estudo feito com o objetivo de provar a eficácia do remédio (sem sucesso) é tratado por ele como uma tentativa de provar sua ineficácia.

O Ministério da Saúde assume que a hidroxicloroquina é eficaz no tratamento da covid-19, distribui milhões de doses do remédio e recomenda que os médicos do SUS o receitem. Todos os estudos que indicarem que o remédio não funciona, porém, serão criticados por não terem usado os critérios corretos, por não terem esgotado as possibilidades de observação ou por não terem usado a dosagem certa.

Imagine que, no lugar da eficácia da hidroxicloroquina, estivéssemos discutindo a existência de discos voadores. O governo brasileiro estaria dizendo que discos voadores existem, sem apresentar prova disso. E quem tentasse encontrar essas provas e fracassasse seria acusado de não ter procurado direito. (Quem quiser saber mais sobre este e outros exemplos de inversão do ônus da prova científica, recomendo a leitura deste artigo de Luis Cláudio Correia, especialista em Medicina Baseada em Evidências.)

O uso político que o presidente Jair Bolsonaro faz da hidroxicloroquina, portanto, leva a uma inversão do ônus da prova sobre a eficácia do remédio. Ele parte da hipótese de que o medicamento funciona, apesar de não ter provas disso. Ainda que centenas de estudos sejam realizados e não encontrem nenhuma evidência de que o remédio é eficaz, ele sempre conseguirá manter a crença cega no medicamento.

Hidroxicloroquina, um remédio sem efeito no tratamento de covid-19. Qualquer outra maneira de se referir ao medicamento apenas dá munição às posturas anticientíficas daqueles que tentam convencer até as emas do Palácio da Alvorada que essa é a salvação para a pandemia.