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Diogo Schelp

Vítima e vetor do coronavírus, Bolsonaro viola a ética das pandemias

Presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, em Brasília - Adriano Machado
Presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, em Brasília Imagem: Adriano Machado

Colunista do UOL

12/07/2020 04h00

O Brasil tem um presidente que é ao mesmo tempo vítima e vetor do novo coronavírus. Ou seja, tem não apenas os direitos de um paciente como também as responsabilidades de alguém que pode transmitir a doença infecciosa. Na pandemia de covid-19, aliás, todos os cidadãos são potenciais vítimas e vetores, porque nem sempre é possível saber quem já está ou não contaminado. Por isso, a ética da pandemia exige que todos abram mão da própria autonomia para agir pensando não apenas no próprio bem, mas também no dos outros. Mas o presidente Jair Bolsonaro, vítima e vetor da doença, violou a ética da pandemia.

Há um livro lançado em 2008 pela editora da Universidade de Oxford que trata em profundidade dos conflitos éticos vinculados a doenças infecciosas: The Patient as Victim and Vetor: Ethics and Infectious Disease (em inglês, "O Paciente como Vítima e Vetor: Ética e Doença Infecciosa"), sem publicação no Brasil, escrito por Margaret Battin, Leslie Francis, Jay Jacobson e Charles Smith. O argumento central da obra é o seguinte: "Problemas éticos em doenças infecciosas devem ser analisados e práticas clínicas, agendas de pesquisa e políticas públicas desenvolvidas levando sempre em conta a possibilidade que uma pessoa com uma doença infecciosa transmissível é ao mesmo tempo vítima e vetor."

Parece óbvio, mas não é, porque a bioética moderna, com explicam os autores, começou em meados do século passado, quando se acreditava que as doenças infecciosas estavam, e estariam sempre a partir de então, sob controle. Não se imaginava, por exemplo, a repetição de uma tragédia em escala global como a Gripe Espanhola de 1918/1919. Com isso, a bioética concentrou-se em dilemas que diziam respeito aos pacientes em sua individualidade e seus direitos apenas, sem a necessidade de pensar em suas responsabilidades como vetores de uma doença.

Uma maneira de abordar a dualidade vítima/vetor que existe nas doenças infecciosas é apresentar ao paciente suas responsabilidades e sua relativa perda de autonomia (por exemplo, ficar de quarentena e sempre usar máscara) como algo que deve fazer não apenas pelos outros, mas também para si mesmo. Isso só funciona se os perigos de uma doença e o risco de um paciente contaminar outras pessoas são comunicados de maneira adequada. O paciente — ou o potencial paciente, no caso da pandemia do novo coronavírus — poderá, assim, equilibrar suas preocupações entre ser uma vítima e ser um vetor da doença.

Quando ainda não tinha contraído a covid-19 (mesmo com o alto risco de isso acontecer, pois muitos de sua equipe já haviam contraído a doença) e saía pelas ruas apertando as mãos de apoiadores e compartilhando perdigotos, Bolsonaro já estava desrespeitando esses princípios. Ele era uma potencial vítima e um potencial vetor.

Quando de fato testou positivo, já vinha há dias viajando e fazendo reuniões presenciais com centenas de pessoas, muitas vezes sem sequer usar máscara. Ou seja, nesse período, ele já era vítima e vetor da doença. Só não sabia ainda.

É por causa de situações como essa que existem as obrigações para usar máscara em público e as medidas de distanciamento social que Bolsonaro tanto critica — e que ele criticou mais uma vez ao fazer o anúncio de seu exame. A irritação do presidente com essas medidas tem a ver, segundo ele, com as liberdades individuais que são violadas, como o direito de ir à praia "onde você transforma vitamina D com banho de sol".

Quando discutem as estratégias de isolamento social, os autores do livro acima dividem-nas em "suaves" (quando as pessoas que são incentivadas a ficar em casa podem sair para atividades essenciais, como ir ao supermercado) ou "duras" (quando as pessoas não podem sair em nenhuma hipótese de casa). Em ambas, a autonomia das pessoas é limitada e a razão para isso é justamente o fato de que, numa pandemia, todos são, potencialmente, ao mesmo tempo vítimas e vetores de uma doença.

O paciente Bolsonaro é vítima e vetor de covid-19. Mas ele só se enxerga como vítima.