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André Santana

Completando 200 anos de devoção, irmandade fará celebrações online na Bahia

Irmandade da Boa Morte, Cachoeira (BA) - Jomar Lima
Irmandade da Boa Morte, Cachoeira (BA) Imagem: Jomar Lima

Colunista do UOL

07/08/2020 18h37

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Fundada em 1820, por mulheres negras, a Irmandade da Boa Morte usará a tecnologia para manter a tradição de louvar Nossa Senhora, no Recôncavo da Bahia. Será por meio de uma live que as senhoras da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, de Cachoeira, irão manter uma tradição que completa dois séculos em 2020.

O louvor à mãe de Jesus, a partir de dois dos títulos que ela possui: Nossa Senhora da Boa Morte e Nossa Senhora da Glória, faz referência ao dogma da Igreja Católica sobre o período que ela dormiu até a assunção — elevação do corpo ao céu — onde foi coroada rainha.

Além da função religiosa, a Irmandade tornou-se um símbolo de resistência à escravidão, construção da cidadania negra e de diálogo inter-religioso, já que muitas das devotas de Nossa Senhora são também iniciadas no Candomblé.

Os festejos, que todos os anos atraem visitantes de vários lugares, inclusive de fora do Brasil para a histórica cidade às margens do rio Paraguaçu, este ano, por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus, não mais ocupará as ruas e, sim, as redes digitais. Ao invés de procissões, lives.

Boa Morte celebra Nossa Senhora - Jomar Lima - Jomar Lima
Boa Morte celebra Nossa Senhora
Imagem: Jomar Lima

Além das medidas restritivas exigidas a toda sociedade, as 30 irmãs que atualmente compõem a irmandade possuem em média 60 anos de idade, já que uma das exigências para integrar o grupo é ter acima de 40 anos. Entre as irmãs estão Dona Dalva Damiana, famosa sambista de 92 anos e Maria das Dores Conceição, Dona Dazinha, que completou 104 anos.

"Este ano vamos concentrar as atividades nos dias 14, 15 e 16 de agosto e toda a programação será online, transmitida pela página da Irmandade, em parceria com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)", explica o fotógrafo e assessor de Irmandade, Jomar Lima. De acordo com ele, mesmo sentidas, as irmãs tomaram a decisão de participarem de suas casas, por meio de aparelhos eletrônicos.

"Esta será a primeira vez que a irmandade não irá para ruas em 200 anos de devoção, já que os historiadores apontam a data de fundação em 1820", explica Jomar. A expectativa é que elas participem utilizando suas vestes e seus acessórios característicos, como as batas, tecidos, torsos e joias. "Elas estarão unidas por meio dos computadores ou celulares, vestidas como manda a tradição", promete.

Irmandade da Boa morte, Cachoeira (Bahia)  - Jomar Lima - Jomar Lima
Irmandade da Boa morte, Cachoeira (Bahia)
Imagem: Jomar Lima

Entre festas e ritos

No ritual, repetido todos os anos, as devotas usam branco no primeiro dia de louvores e realizam uma ceia; depois, no segundo dia, expressam o luto, caminhando silenciosamente pela cidade, utilizando roupa preta e uma espécie de véu cobrindo parte do rosto, sem nenhum acessório; para finalmente celebrarem a glória de Maria, no dia 15 de agosto, em procissão festiva, com panos vermelhos e joias douradas. Completam a festa com distribuição de comida e muito samba de roda, outra tradição do Recôncavo da Bahia que este ano será mantida por meio de uma live do grupo Gêge Nagô (confira a programação abaixo).

Pesquisadora sobre festas, a jornalista e doutora em Antropologia Cleidiana Ramos explica que a festa é uma celebração que geralmente tem um conjunto de ritos. "São várias potencialidades desdobrando-se e interagindo. Alguns ritos são 'normatizados' e não saem do controle. Mas esse momento é um grande desafio para as festas que usam a rua".

Irmandade vela Nossa Senhora - Jomar Lima - Jomar Lima
Irmandade vela Nossa Senhora
Imagem: Jomar Lima

Como exemplo, a pesquisadora cita a própria Festa da Boa Morte, em Cachoeira: "Como transmitir aqueles três dias de ritos diferenciados e elaborados da Boa Morte: a vigília da dormição, a ceia, a procissão do enterro, e por fim, o ápice que é a procissão da glória?". Sobre a utilização das tecnologias, ela observa que há algumas potencialidades, mas nem tudo é possível. "Veja que é uma adaptação, um modelo possível. Vai ter festa? Sim, mas uma nova festa", afirma Cleidiana. Ela compartilha, junto a outras pesquisadoras, observações sobre as festas populares e religiosas no perfil Espelho de Festas, no Instagram.

Nego Fugido - Acervo Casa do Nego Fugido - Acervo Casa do Nego Fugido
Nego Fugido, Acupe de Santo Amaro
Imagem: Acervo Casa do Nego Fugido

Espantar a Morte

Outra celebração do Recôncavo da Bahia já impactada pela pandemia foi o Nego Fugido, da comunidade de remanescentes de quilombo de Acupe, em Santo Amaro da Purificação. A aparição do Nego Fugido ocorre, todos os domingos de julho, pelas ruas da cidade, celebrando o protagonismo do negro na luta pela libertação da escravidão.

Este ano não houve a parte cênica, a manifestação cultural pelas ruas. "Grupos reduzidos saíram pelas ruas, mantendo o lado espiritual e evitando aglomeração. Utilizamos as redes sociais para publicar conteúdos e pedimos para que as pessoas não visitassem a comunidade de Acupe neste período", explica Mony Tolonan (Monilson dos Santos Pinto), doutorando em Artes Cênicas e integrante da Associação Cultural Nego Fugido.

Monilson explica que a tradição tem entre 150 e 200 anos. Ao longo deste período, houve situações que impediram que a manifestação acontecessem, como no período em que os participantes não queriam relacionar a manifestação aos eguns, espíritos dos mortos, apartando o lado espiritual do Nego Fugido.

O pesquisador conta que o mito de origem do Nego Fugido está relacionado com uma praga de Iku (a morte) que chegaria à cidade, em agosto. Por isso o ritual de expulsão no mês anterior. "Esse ano foi curioso. Com a pandemia, o passado retorna e se atualiza. Não houve caso de covid em Acupe até o final de junho. As cidades vizinhas já tinham, mas Acupe não registrava nenhum caso confirmado. No dia 1º de julho, foram logo 40 casos na comunidade. Em menos de uma semana já eram quase 70 confirmados. Por isso, os grupos do Nego Fugido foram às ruas para espantar a praga de Iku", detalha.

Festa da Boa Morte de Cachoeira 2020

14 e 15/18, 19h - Encontro online das senhoras da Irmandade para oração

Dia 16/08, 9h - missa celebrada na Igreja matriz da cidade, sem a presença de público e transmissão online

16/08, 15h - apresentação do Grupo Gêge Nagô

Simpósio Identidades, Culturas e Religiosidades, dias 14 e 15/08, com mesas virtuais, em parceria com a UFRB e com a Fundação Hansen Bahia.