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Fabiana Moraes

Bolsonaro, a imprensa e um fetiche chamado Nordeste brasileiro

O presidente Jair Bolsonaro, usando um chapéu de vaqueiro, discursa durante inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista, na Bahia - Divulgação - 23.jul,19/Presidência da República
O presidente Jair Bolsonaro, usando um chapéu de vaqueiro, discursa durante inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista, na Bahia Imagem: Divulgação - 23.jul,19/Presidência da República

colunista do UOL

29/08/2020 04h03

Seis de janeiro de 1878: o carioca Jornal do Commercio traz em suas páginas uma matéria sobre um inédito "auxilio do governo" decorrente da "grande secca" no Norte e apela a D. Pedro 2º e à Teresa Cristina de Bourbon em nome das vítimas da estiagem: "Sua Majestade o Imperador e a virtuosa e muito amada Imperatriz abrirão seus bolsinhos com largueza em socorro dos flagelados."

30 de julho de 2020: o jornal Folha de Pernambuco exibe uma foto de Jair Bolsonaro (sem partido) no Piauí segurando um chapéu de boiadeiro. Foi inaugurar uma adutora do rio São Francisco, obra iniciada no governo Dilma Rousseff (PT) e que promete socorro para sedentas cidades no extremo norte da Bahia. Embalado pelo auxílio emergencial, ele promete que continuará abrindo o bolsinho. Está a léguas do presidente que, no início da pandemia, ofereceu R$ 200 mensais para a população.

O poder, o Nordeste, a água, a seca, a pobreza: o Brasil impresso nos jornais do fim do século 19 volta para as nossas retinas principalmente nos períodos eleitorais, quando líderes políticos e imprensa retornam a um cabedal de discursos que serve como uma espécie de mito fundador da região formada por nove estados.

Nele, somos reapresentados a personagens pelos quais nutrimos uma relação ambígua, dotada às vezes de comiseração, às vezes de antipatia: o povo magro, o abandonado, o ingênuo, o pouco escolarizado, o meio dormente de fome e de reatualizados flagelos. Os exóticos comedores de tatus.

Políticos e imprensa despem-se dos trajes usuais e recorrem ao gibão, ao chapéu de couro, ao pote de água, à panela vazia, ao suor na testa.

Recorrem às fotografias das casinhas de barro que servem de cenários para aquelas famílias numerosas e de corpos meio alquebrados. O Brasil, desde o século 19, as observa nos jornais e rapidamente conclui do que elas precisam: um pai, um tutor, um herói, alguém que acuda, que abra o bolsinho, que olhe por nós, que compreenda nossa infantilidade, que suba no jegue para nos guiar.

Testa suada e chapéu de couro

Nesse sentido, é icônica a fotografia de Geraldo Alckmin (PSDB), então candidato à Presidência da República em 2018, na qual o vemos sob o sol, usando, é claro, um chapéu de couro enquanto olha muito sério para o horizonte e segura uma panelinha de alumínio. O que nos oferece aquele homem de pele alva vindo da região mais rica do país? Água? Conforto? Futuro? Merenda?

Dois anos depois da visita do ex-governador de São Paulo ao sertão nordestino, temos outro homem de pele clara exibindo a testa suada sob o Sol. Atitudes menos comedidas, ele traz nas mãos o auxílio emergencial surgido por conta da pandemia, da pressão popular e do Congresso, não pela execução de uma programa governamental de redistribuição de renda ou amparo social.

Essa diferença, sobre a qual falarei em breve, é fundamental para distingui-lo de qualquer política social de governos anteriores.

A presença do presidente nascido em São Paulo e talhado no Rio de Janeiro no meio da população sertaneja causou o novo velho alvoroço da imprensa, seja ela do Sul, do Sudeste ou mesmo das capitais nordestinas. Logo correram para enviar seus repórteres até o tal "Brasil profundo", aquele que continua, no imaginário de muitos, sem rádio e sem notícias da terra civilizada.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, cumprimenta populares no Aeroporto Internacional Serra da Capivara de São Raimundo Nonato, em seu primeiro evento público desde que se recuperou da covid-19 - Alan Santos/Presidência da República - Alan Santos/Presidência da República
Jair Bolsonaro cumprimenta populares no Aeroporto Internacional Serra da Capivara de São Raimundo Nonato (PI)
Imagem: Alan Santos/Presidência da República

Lá vem o "pai dos pobres"...

No retorno, bingo: lá estavam os dormentes de tanta falta falando algo sobre o "pai dos pobres", termo que aparece no título de uma na reportagem publicada pela Folha de S.Paulo no dia 19 de agosto, muito embora não esteja na declaração de qualquer pessoa entrevistada. Antes, está internalizada no olho coletivo de repórteres, fotógrafos, editores, revisores.

A excelente pesquisa do professor Frederico Castro Neves (Universidade Federal do Ceará) nos mostra a longa duração dessa mirada calcada sobretudo em relações de poder: no artigo "Desbriamento" e "Perversão": Olhares Ilustrados Sobre os Retirantes da Seca de 1877, ele analisa como três jornais, dois do Rio de Janeiro (Gazeta de Notícias, Jornal do Commercio) e um do Ceará (O Cearense), vão narrar as vivências de trabalhadores e trabalhadoras rurais vitimados por aquela que se tornou a primeira seca midiática do Brasil. Neles, desfilam as "figuras desoladas, famintas, desfallecidas, moribundas, debatendo-se nas angústias da morte".

É também a partir dessa seca que começam as pressões para que uma política governamental de ajuda à população sertaneja se efetive e dê lugar às ações de caridade: os ventos da República já balançavam os cabelos do Brasil imperial, e a elite intelectual e econômica mais liberal queria ver aquele povo de pé para trabalhar e acumular patrimônio. Muitos entoavam o mantra contemporâneo e meio partido novista do "melhor que dar o peixe é ensinar a pescar".

Se hoje ainda ouvimos termos violentos e classistas como "bolsa esmola", bastante empregado por boçais para se referir ao programa Bolsa Família, a pesquisa de Neves mostra que o socorro do governo também arrepiava parte das elites econômica e intelectual daquela época.

Os "aggregados" longe da "civilisação"

Em vez de somente receber auxílios, os "aggregados" — como eram chamados os homens pobres livres que habitavam terras rurais do Império — precisavam produzir. Era importante que entendessem que aquele país, apesar de continuar escravocrata, apesar de ter confeccionado uma Lei de Terras feita sob medida para promover latifundiários, era civilizado.

"Os aggregados desconhecem o gozo da civilisação", dizia o jornal. Lembra bastante as declarações de Bolsonaro sobre outra população atravessada por estereótipos, a indígena, que precisa, para o presidente e seu ministro do anti-Meio Ambiente, Ricardo Salles, banhar-se em rios de mercúrio para se tornarem brasileiros melhores.

Como eles, os sertanejos tinham, em suma, de adequar-se à modernidade, contribuir efetivamente com o progresso nacional, como pedia um editorial do Jornal do Commercio em 9 de janeiro de 1878: "Sem propriedades, eles não constroem casas para morar, contentão-se com míseras choupanas, ligeiramente construídas, uns abarracamentos, fáceis de serem levantados da noite para o dia".

Não é fascinante olhar os jornais e revistas atuais e perceber que, apesar de serem vistas em número infinitamente menor que as moradias de alvenaria, as casinhas de barro continuam a atrair prioritariamente as lentes das câmeras e o interesse dos jornalistas?

Ah, pobre Nordeste.

A agricultora Ivonete da Silva, 47 anos. Vive em Flores, Sertão de Pernambuco, e está recebendo o auxílio emergencial - Géssica Amorim/Divulgação - Géssica Amorim/Divulgação
A agricultora Ivonete da Silva, 47 anos. Vive em Flores, Sertão de Pernambuco, e está recebendo o auxílio emergencial
Imagem: Géssica Amorim/Divulgação
Essa grande Paraíba

Outra operação posta em curso por uma significativa parcela da imprensa nacional é a repetição da frase "Bolsonaro está seguindo os passos do PT no Nordeste". Esse novo mantra é uma espécie de mil folhas discursivo que carrega sob suas camadas um bocado de prepotência e desconhecimento sobre a pobreza brasileira. Há, também, ausência de delicadeza.

Quando mistura Bolsa Família e Auxílio Emergencial, o primeiro atrelado aos governos petistas e articulado a partir de ações do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o segundo nascido na atual administração bolsonarista, nossa imprensa (e cientistas políticos, filósofos, sociólogos e toda uma sorte de especialistas) ofusca um fato crucial: um surge como programa contínuo de transferência de renda que exige, por exemplo, matrícula escolar e acompanhamento gestacional. É lei.

O outro, como se sabe, é uma transferência pontual e necessária para ajudar pessoas impactadas pela crise decorrente da pandemia. Se em março Bolsonaro queria trocar o auxílio por reformas econômicas, agora, sem qualquer pudor — pelo contrário, vale até rifar ministro — ele coloca na cabeça um chapéu de couro e instrumentaliza o benefício para conseguir pavimentar seu caminho até a reeleição.

Traçar equivalência entre estas duas realidades é, no mínimo, promover aquilo o que o jornalismo em tese deve combater: a desinformação. Mais: atenua a forma anacrônica com a qual o governo federal estabelece hoje sua relação com o segundo maior colégio eleitoral do país em lugar de traçar um ponto de vista mais rico sobre a relação histórica entre partidos e aqueles que um dia foram chamados de desolados e famintos.

Afinal, a pobreza extrema no Nordeste, acreditem, não brota do chão.

A "preocupação" de Bolsonaro com o Nordeste

Bolsonaro nunca gastou mais do que 2 minutos pensando sobre isso: sua preocupação com a população nordestina é tão real quanto as pedras preciosas vendidas nas ruas da 25 de Março, em São Paulo.

Os exemplos são vários e recentes: no início deste ano, autorizou o corte de 158 mil inscrições do Bolsa Família, 61% concentradas na região Nordeste. Foi o Supremo Tribunal Federal, após governadores da região entrarem com ação em março, que suspendeu a decisão.

Não custa lembrar que em junho o governo federal também anunciou o remanejamento de R$ 83,9 millhões do Bolsa Família para publicidade institucional. Ou seja: tirar dinheiro de famílias pobres para aparecer mais bonito na TV. Dias depois, desistiram da ideia.

Bolsonaro não colocou os pés aqui durante uma de nossas maiores tragédias ambientais, o vazamento de óleo que fez desabar a pesca e afastou turistas do litoral nordestino em 2019. Foram milhares de pessoas sem acesso ao seu principal meio de sustento. Enquanto o presidente politizava a até hoje não bem explicada ação criminosa, boa parte do trabalho de retirada do petróleo cru era feita por por gente que se expôs à toxicidade do material — muitas delas caindo doentes.

O presidente fala atualmente, enquanto se molha da água de poços no sertão, que quer incrementar o turismo, mas inexplicavelmente não deu bola para as manchas negras que afetaram a segunda maior barreira de corais do mundo. Talvez só agora Bolsonaro, três vezes no NE em agosto, tenha entendido que entre o Maranhão e a Bahia não existe apenas a Paraíba e que há aqui pelo menos mais dois modelos de carros além do pau de arara.

Talvez Bolsonaro, assim como parte da imprensa, acredite que basta sacar um cartãozinho de plástico reluzente para que gerações diversas, algumas delas inseridas em universidades nas quais os pais nunca colocaram os pés, se curvem ao projeto de herói. Muitos, pragmáticos, o farão. Mas essa relação não é tão automática quanto se pensa.

Lá em Sítio dos Nunes, distrito de Flores, sertão de Pernambuco, a agricultora Maria Ivonete da Silva, 47 anos, está feliz com seu celular de segunda mão comprado com parte do auxílio emergencial. Foi usando ele que ela falou comigo sobre sonho, desejo e futuro. Conta que não votou no presidente sudestino, nem pretende votar. Conta que gosta de transcrever livros. Que está ajudando as famílias de dois filhos. Mais: Ivonete conta que ela, o marido, os filhos e netos sabem que esse tempo de dinheiro mais farto é chuva com hora para acabar.

Errata: o texto informava que o Governo Federal tentou cortar R$ 89 mil do Bolsa Família. Na verdade, foi pior: foram R$ 83,9 millhões. A informação foi corrigida.