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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A resistência contra Lula e Bolsonaro

Montagem com fotos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do deputado federal Jair Bolsonaro - Arte/UOL
Montagem com fotos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do deputado federal Jair Bolsonaro Imagem: Arte/UOL

Colunista do UOL

27/08/2021 00h42

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Heath Ledger e Joaquin Phoenix podem ter superado Jack Nicholson no papel de Coringa, mas nem Kevin Spacey superou Gene Hackman no papel de Lex Luthor, "a maior mente criminosa do nosso tempo", que dirá Jesse Eisenberg.

Hackman, hoje com 91 anos, é um dos meus atores favoritos porque ele conseguiu ser hilariante não só como o vilão que oferece a localização do Super-Homem ao general Zod em troca da Austrália, mas também como o promotor que recusa uma oferta de suborno para entregar uma testemunha a Leo Watts, em "De frente para o perigo".

A cena se passa em um trem de passageiros. Um dos capangas do gângster, sentado à mesa com Robert Caufield, personagem de Hackman, oferece a ele "dez vezes o que você ganha em um ano", enquanto outro membro da gangue acompanha a conversa de pé. O primeiro reitera a proposta, fazendo uma sutil ameaça: "Dez vezes. Você não iria tão longe nem se trabalhasse por mais 30 anos. E há sempre a chance de não sobreviver."

O diálogo é divertido porque Caufield se faz de sonso, como se não soubesse o paradeiro da testemunha, escondida em um dos vagões. Como ela pretende depor no tribunal contra seu chefe, o capanga insiste, lembrando que o personagem de Hackman, embora tenha sido o melhor da turma de Direito e fuzileiro premiado, tem "reputação de falar demais", "irrita muita gente" e "nunca vai chegar a promotor estadual". "Acho que há dois motivos para alguém continuar como adjunto: ou é rico ou tem medo de voar solo", provoca.

A reação sarcástica de Caufield é memorável: "Há um terceiro motivo: não gosto de gente como você. Detesto, ainda mais, gente como seu chefe. Gosto muito de colocá-los na cadeia. Se eu quisesse ganhar dinheiro, teria de defender vocês. Não seria divertido. Eu me sentiria sempre sujo. Gosto de ir à sala de audiência e observar enquanto o juiz lê a sentença e o colarinho de vocês começa a ficar apertado. Vou adorar sentar lá e ver Leo Watts. Gosto do meu lado na Justiça. O pagamento não é incrível, mas o ar é muito melhor."

O capanga, ainda assim, não se dá por vencido: "Estou oferecendo tanto dinheiro que sua vida seria muito diferente. Não me diga que está acima das tentações."

"Estou muito tentado pela sua oferta", ironiza Caufield. "Mas há um pequeno problema."

"Qual é o problema?"

"Não sei de que mulher você está falando."

O fingimento do promotor é altruísta, claro: para manter seus princípios, protegendo a vida da testemunha no caminho tortuoso ao tribunal, Caufield assume os riscos de morrer assassinado nas próximas estações ou de viver sem maiores luxos.

Eu, Felipe, coleciono e descrevo momentos cinematográficos de grandeza moral, porque eles são tão raros na política brasileira que o imaginário do cidadão em meio a disputas tribais fica limitado a exemplos de oportunismo rasteiro e sonsice perversa.

Lula, que atribuiu à falecida esposa Marisa Letícia as principais decisões acerca do triplex no Guarujá, poderia ter recusado tanto as reformas quanto o uso do sítio de Atibaia, propriedade também customizada por corruptores confessos da OAS e da Odebrecht, empreiteiras favorecidas no esquema de corrupção da Petrobras durante os governos do PT. O petista nem precisaria enfrentar tentativas de homicídio, apenas aceitar uma vida sem maiores luxos do que os demais de que já dispunha.

Na falta da preocupação moral, no entanto, resta a políticos tão somente o medo de ser preso, o que naturalmente diminui, até o limite da onipotência, quanto mais juízes ele e seus correligionários tiverem indicado para tribunais superiores e quanto mais leis anticrime ou eleitorais suas bancadas puderem alterar a favor da blindagem geral.

Quatro ministros do STF indicados por Lula (Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber) foram decisivos para a formação da maioria a favor da suspeição do juiz concursado (Sergio Moro) que o condenou em primeira instância no caso do triplex e em cujas mãos ficou inicialmente o do sítio, o que levou à anulação de provas também neste caso, contribuindo para a recente decisão da juíza Pollyanna Kelly, de Brasília, de rejeitar a denúncia do Ministério Público contra o petista.

Quem pautou a suspeição do juiz no caso do triplex e depois a estendeu ao do sítio foi Gilmar Mendes, o ministro indicado no governo do PSDB que, conforme tantas vezes previ, encerrou uma ação penal contra José Serra por recebimento de propinas da Odebrecht e lavagem de dinheiro transnacional, anulando todas as provas obtidas contra seu amigo tucano pela extinta força-tarefa da Lava Jato em São Paulo. Em julho de 2020, Dias Toffoli suspendeu uma ação da Polícia Federal no gabinete e no apartamento funcional do senador e mandou lacrar todo o material reunido até então pelos investigadores, o que incluía e-mails íntimos trocados com Gilmar que poderiam ser usados pela Procuradoria-Geral da República para pedir a suspeição do ministro. Pelos efeitos práticos de seus votos e decisões, portanto, Gilmar ajudou Toffoli a blindar Lula, enquanto Toffoli ajudou Gilmar a blindar Serra.

Quem ajudou a blindar Toffoli e Gilmar, por sua vez, foi a família Bolsonaro, quando enterrou a CPI da Lava Toga em busca de blindagem no Supremo contra a investigação de peculato em gabinete, muito antes de João Otávio de Noronha contribuir no STJ, suspendendo a tramitação da denúncia contra Flávio. Curiosamente, Gilmar e Toffoli agora aliviam a barra até do advogado dos Bolsonaro, Frederick Wassef: o primeiro o blindou contra a operação E$quema S, o segundo contra a quebra de sigilo fiscal determinada pela CPI da Pandemia.

Se ainda havia dúvida sobre a aliança de Jair Bolsonaro com o establishment contra o combate à corrupção, ela se esvaiu na aprovação da recondução do seu indicado Augusto Aras ao cargo de PGR, com apoio do PT. Bastou repetir o mantra do fim da "criminalização da política" que o parecer favorável de Eduardo Braga, de quem o próprio Aras pediu a absolvição em investigação de caixa três, recebeu 55 votos de senadores, sob o protesto de Alessandro 'Caufield' Vieira: "Não podemos criminalizar a política, mas o caminho para isso é excluir os criminosos da política, e não, de qualquer forma, acobertar quaisquer atos que possam ser considerados criminosos."

No mesmo dia, Flávio Bolsonaro, denunciado por lavagem de dinheiro, votou contra um projeto do próprio Vieira que dificulta a lavagem de dinheiro ao vedar operações em espécie a partir de certas quantias e também transações imobiliárias - o que teria impedido Flávio, Carlos e Eduardo de adquirir imóveis da forma como já fizeram. O projeto, apesar do primogênito do presidente, foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, embora o avanço tenha sido apenas um sopro de ar em meio àquilo que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de vingança do sistema.

O momento mais emblemático dessa retaliação veio no dia seguinte, com a revelação da "reforma" eleitoral elaborada para barrar a eventual candidatura de Sergio Moro à presidência em 2022 e de Deltan Dallagnol a qualquer outro cargo eletivo, já que o texto da deputada Margarete Coelho, do PP de Ciro Nogueira, torna inelegíveis todos os magistrados ou membros do MP que tenham se afastado do cargo há menos de cinco anos das eleições, como sugeriu Toffoli em 2020. Satisfeito com Lula e Bolsonaro, o sistema tenta se blindar e se vingar contra quem se sentiria sempre sujo se compactuasse com seus expedientes.

Lex Luthor teria mais sorte no Brasil que na Austrália. Qualquer Coringa consegue fazer de Brasília a sua Gotham City. O prazer de observar o colarinho apertado dos quadrilheiros, enquanto juízes de primeira e segunda instâncias, às vezes até do STJ, liam suas sentenças, acabou para os pagadores de impostos. Sobrou, contudo, uma resistência dispersa, pronta para sair às ruas sem Super-Homem, nem Batman. Enquanto a claque de Bolsonaro fatura alto distraindo inocentes úteis com falsas polarizações e a de Lula sente novamente a perspectiva de poder, eu gosto mesmo é de permanecer e resistir na primeira realidade, compartilhada pelos potenciais manifestantes de 12 de setembro.

O pagamento não é incrível, mas o ar é muito melhor.