Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A guerra contra a realidade
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"Havíamos pensado muitas vezes que estávamos em uma guerra. Mas era simplesmente porque não sabíamos o que era uma guerra."
A frase da personagem e narradora Tóquio na série "La Casa de Papel" me veio à cabeça quando acordei de madrugada com notícias dos bombardeios russos na Ucrânia, ordenados por Vladimir Putin. Horas depois, o governo ucraniano anunciou os primeiros mortos: 40 soldados e uma dúzia de civis.
"A leitura que eu tenho do presidente Putin é que é uma pessoa que busca a paz", disse Jair Bolsonaro ao visitar o Kremlin, oito dias antes da invasão. "Somos solidários à Rússia", declarou também o presidente, levando a porta-voz da Casa Branca a comentar que "o Brasil parece estar do outro lado de onde está a maioria da comunidade global".
A guerra de Bolsonaro contra a realidade e suas formas de expressão, assim como a dos anti-imperialistas seletivos do PT que culpam os EUA pelos ataques, tem um lastro tão grande que ele havia chamado até de "conservador" o autocrata russo, apoiado não só pela China, mas também pelos amigos ditadores de Lula, como Nicolás Maduro, da Venezuela, e Daniel Ortega, da Nicarágua. Se houvesse qualquer lógica, mesmo que binária e falsa, no raciocínio rasteiro bolsonarista, eu diria que a conclusão veio do fato de Joe Biden fazer parte da esquerda dos EUA e polarizar (muito mal) no cenário global com Putin, já que a família Bolsonaro, por posar de defensora de posições da direita americana em matéria de costumes, julga-se conservadora também.
Em seu sentido político, no entanto, o conservadorismo não é uma tradução da cartilha contemporânea do Partido Republicano, só porque seus integrantes passaram a ser chamados de "conservatives"; mas, sim, uma reação ou pré-disposição contrária a ideologias, sejam elas de esquerda ou de direita, que busquem impor à força um futuro utópico ou o resgate de um passado idealizado - exatamente como pretende Putin, um autocrata reacionário, ao buscar incorporar ex-repúblicas soviéticas à Rússia sob o pretexto de defender o país contra os avanços da Otan no leste europeu, enquanto, internamente, prega valores da Igreja Ortodoxa em oposição à "decadência ocidental".
"Do fundo do meu coração, presidente Putin, pare suas tropas. Dê uma chance à paz. Muitas pessoas já morreram", implorou o secretário-geral da ONU, António Guterres, na declaração mais emblemática da incapacidade do Ocidente de lidar com a situação, que remete aos avanços iniciais de Hitler sobre a Áustria e os Sudetos antes de surpreender potências com a invasão da Checoslováquia. Só bolsonaristas imaginariam Putin sensibilizado por um apelo vindo das profundezas do peito de um estrangeiro.
Bolsonaro "levou uma mensagem de paz para o presidente Putin e, graças a Deus, já foram retiradas as tropas e não se fala mais em guerra", disse o ministro do Turismo, Gilson Machado, sete dias antes da... guerra. Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, também havia dito que o presidente convencera Putin a não invadir.
O bolsonarismo, constituído em torno do seu líder pretensamente messiânico, é uma força política brasileira que une fisiologismo, militarismo e reacionarismo aloprado, propagandeando valores ditos patrióticos, liberais, conservadores e cristãos para ludibriar as massas e acobertar práticas patrimonialistas, pró-impunidade, populistas, fanfarronas, negacionistas e eventualmente golpistas da família Bolsonaro e de seus aliados.
Quando a realidade, literalmente, explode aos olhos do mundo, eles ficam completamente perdidos. Não fazem a menor ideia do que seja uma guerra de verdade.
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