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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dez lições da primeira semana de guerra na Ucrânia

Bombeiros extinguindo um incêndio no prédio do departamento de polícia regional de Kharkiv - AFP
Bombeiros extinguindo um incêndio no prédio do departamento de polícia regional de Kharkiv Imagem: AFP

Colunista do UOL

02/03/2022 12h34Atualizada em 02/03/2022 14h25

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Os últimos dias foram intensos e cansativos. Tem sido difícil digerir e acompanhar tanta coisa ao mesmo tempo e todas as suas complexas implicações.

Para seguir estimulando o debate qualificado e a reflexão crítica do conflito no leste europeu, proponho dez aspectos a serem analisados. São "lições" sobre política internacional sobre as quais temos nos defrontado ao longo dessa semana.

1) A multipolaridade é um espaço de insegurança. Se, por um lado, o senso comum leva a crer que é muito mais desconfortável viver sob uma hegemonia ou no contexto da bipolaridade, como era o caso da Guerra Fria, o conflito na Ucrânia dá razão ao conjunto de intelectuais que, há tempos, defende que o mundo de várias potências é mais instável e sujeito a crises e enfrentamentos com rápido poder de escalada do que os modelos anteriores.

2) Toda guerra envolve, para além do combate concreto, também uma batalha de narrativas e disputas pelo que as partes entendem ser "a verdade". O ambiente internacional é espaço fértil para interpretações da realidade objetiva (se é que ela existe). Essas interpretações servem tanto a interesses materiais como também à defesa de ideias, crenças, valores e visões de mundo. Não é possível compreender o que acontece na Ucrânia ignorando a convivência de aspectos ligados a poder, interdependência e identidades.

3) Estamos diante de uma "nova era de guerras", como já explorei, de forma mais aprofundada, na última coluna por aqui. As novas guerras envolvem a complexa convivência entre:

  • O pré-moderno (civis despreparados lutando com recursos improvisados),
  • O moderno (com ameaças nucleares, químicas e biológicas) e
  • O pós-moderno (o enfrentamento no universo cibernético e das disputas em torno da desinformação).

Tudo isso com cobertura extensiva e exposição 24 horas, sete dias por semana, pelas mídias tradicionais e redes sociais/de comunicação.

4) No mundo globalizado, a guerra não ocorre apenas no front de combate, mas sobretudo isolando e drenando econômica e socialmente o alvo. Nesse contexto, a superioridade militar é, sim, importante —mas ela não é tudo. É preciso considerar o peso de resposta dos atores tradicionais, como Estados e organizações internacionais, mas também a capacidade de ação e mobilização de diversas forças transnacionais, que vão de empresas a instituições dos mais variados tipos.

5) As decisões tomadas pelas lideranças até aqui, tanto no Ocidente quanto na Ucrânia e na Rússia, envolvem, obviamente, interesses vitais, mas não devemos ignorar "a política da política externa". Isso porque os movimentos têm, sempre, levado em consideração as percepções da opinião pública dos países envolvidos, os efeitos sobre a popularidade de seus representantes, sua ambição em criar legado e os efeitos imediatos causados do ponto de vista da governabilidade interna. As movimentações e acenos nessa guerra também são para consumo doméstico.

6) Não há nada que dure para sempre em matéria de política externa. Até outro dia, os especialistas tratavam a Otan como antiquada e anacrônica, e o próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, problematizava sua relevância e seus custos de manutenção. Em alguns poucos meses, a Otan passou a ser vista como o amálgama que aproxima os aliados, responde às ameaças do Ocidente e é defendida como prioridade estratégica de segurança pelo presidente norte-americano Joe Biden.

7) Não há como pensar no xadrez geopolítico global sem considerar o papel da China. A ascensão chinesa é, definitivamente, um caminho sem volta e o país tem papel central no encaminhamento da crise atual. Tanto para a Rússia, que vê na parceria com Pequim uma "tábua de salvação" econômica e um contraponto político ao Ocidente, quanto para os Estados Unidos, que já demonstram disposição em baixar o tom agressivo adotado até então contra Pequim por reconhecer a necessidade de manter diálogo construtivo se a meta é refrear Putin.

8) É preciso reformar a ONU urgentemente e revisitar suas estruturas de funcionamento. A organização é disfuncional e lenta para responder aos desafios desse século.

9) Para entender o que está acontecendo nesse momento é preciso conter as paixões e isolar a torcida. As guerras só acabam quando terminam. No calor do combate, as informações são desencontradas e, muitas vezes, propositalmente manipuladas pelas partes envolvidas com o objetivo de alimentar enredos. O ritmo do enfrentamento não acompanha a velocidade de um áudio de WhatsApp.

10) Não existem respostas fáceis nem saídas simples para problemas complexos. Desconfie de qualquer um que propuser qualquer coisa nessa direção. Vivemos tempos que pedem calma, sutileza de nuances e a diligência típica dos mergulhos profundos.