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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O 'não-dito' nas negociações entre Rússia e Ucrânia

Zelensky e Putin - Reprodução
Zelensky e Putin Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

16/03/2022 16h08Atualizada em 16/03/2022 16h32

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Nos últimos dias, conforme avançam as tentativas de negociação entre Rússia e Ucrânia, temos debatido à exaustão sobre quais poderiam ser considerados "endgames" aceitáveis pelo governo Putin —e, claro, o que poderia deixar a administração Zelensky em posição minimamente confortável.

A lista de demandas do Kremlin é extensa e difícil de acomodar.

Ela inclui:

  1. A desmilitarização da Ucrânia;
  2. Sua "desnazificação";
  3. O reconhecimento de independência de Lugansk e Donetsk;
  4. O reconhecimento de que a Crimeia, ocupada desde 2014, pertence formalmente à Rússia;
  5. A renúncia à aproximação da Ucrânia com a Otan;
  6. A retirada de armas estratégicas (sobretudo norte-americanas) de território europeu;
  7. O fim das ingerências políticas ocidentais sobre grupos políticos internos do país, principalmente os que defendem uma agenda anti-Rússia; e
  8. Uma política externa de relativa "neutralidade" naquele país.

Autoridades russas têm insistido em falar sobre um modelo análogo ao de Áustria ou Suécia para a Ucrânia. Isso resolveria, aos olhos desses líderes, pelo menos os pontos 1 e 8 da lista disposta acima.

Na prática, de acordo com Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, significa que a Ucrânia poderia manter suas forças armadas, mas não estaria autorizada a possuir bases no exterior. Seria uma forma de endereçar também o objetivo de número 5, portanto.

Em nome do compromisso contra a expansão da Otan, a concessão implícita nesse cenário parece ser uma certa abertura dos russos para que a Ucrânia pudesse aderir à União Europeia, como é o caso tanto de Áustria quanto de Suécia. O "não-dito" nesse caso é o que mais merece alguma reflexão. Sugerir o trade-off da Otan pela UE como uma barganha aceitável, interessa aos russos por, pelo menos, três motivos.

Em primeiro lugar, porque oferece ao governo ucraniano uma saída honrosa, permitindo que o presidente Zelensky capitalize e se projete a partir de uma conquista que, na prática, é pouco vital para a agenda de Moscou. Zelensky já entendeu que a adesão à Otan se tornou inviável e que precisará encontrar meios de sair desse conflito sem contar com o engajamento militar direto do Ocidente. Precisa de algo a que possa se agarrar e que lhe garanta o mínimo de dignidade no poder.

Em segundo lugar, ao aceitar o movimento de aproximação entre Ucrânia e União Europeia, o governo russo poderia estar buscando tentar isolar do cálculo geopolítico o ator com quem tem mais diferenças nesse momento: os Estados Unidos. Há quem sugira, inclusive, que ao abrir espaço para a interlocução com a Europa, os russos teriam melhores condições de lidar com uma Otan que hoje é extremamente dependente dos Estados Unidos.

Em terceiro lugar, muitos consideram que ao aceitarem uma eventual adesão de Ucrânia à União Europeia em troca do afastamento da Otan, os russos estariam, na prática, propondo uma "falsa vitória" para seus adversários. Conseguiriam o que desejam do ponto de vista de seus interesses imediatos de segurança, sem riscos significativos de médio prazo.

Isso porque, abrir espaço para que a Ucrânia demande incorporação à UE nem de longe representa sua real adesão ao bloco. Há uma longa fila de países aguardando resposta pelo mesmo pleito, entre eles Albânia, República da Macedónia do Norte, Montenegro, Sérvia e Turquia. O processo é lento e incerto.

Ademais, para além dos ritos e protocolos burocráticos, que usualmente levam tempo, o ingresso depende do atendimento a uma série de passos e de diversos critérios políticos, econômicos e monetários. Se, naturalmente, a Ucrânia já teria dificuldade em atendê-los, as circunstâncias são ainda mais desfavoráveis no contexto da devastação pós-guerra. Pode ser, desse modo, que o pedido nunca obtenha êxito ou, no mínimo, se arraste por anos.

Putin precisa de um "fim de jogo" com conquistas concretas que possam justificar sua controvertida ação militar e todos os danos econômicos que se abateram contra a Rússia como resposta dessa escolha. Zelensky precisa retomar a capacidade de governar e afastar de si tanto a agressão russa quanto a hesitação ocidental. Os líderes de Estados Unidos e Europa precisam que Putin e Zelensky resolvam, o mais rápido possível, os seus próprios problemas, antes que se torne inevitável escalar o conflito.

Como costuma ser típico na política, estamos diante de uma situação em que todas as partes buscam não apenas pela defesa de seus interesses materiais mais óbvios, mas trabalham, principalmente, pela necessidade de salvar as próprias aparências.