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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Crimes de guerra: Denúncias na Ucrânia expõem hipocrisia da política global

2.abr.2022 - Os corpos de pelo menos 20 pessoas em trajes civis estavam espalhados em uma rua de Bucha, cidade a noroeste de Kiev - Ronaldo Schemidt/AFP
2.abr.2022 - Os corpos de pelo menos 20 pessoas em trajes civis estavam espalhados em uma rua de Bucha, cidade a noroeste de Kiev Imagem: Ronaldo Schemidt/AFP

Colunista do UOL

05/04/2022 18h33Atualizada em 05/04/2022 21h21

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Ao contrário do que muitos possam imaginar, a guerra não é uma "terra sem lei". Nela, assim como em todo tipo de organização social, existem códigos pactuados de comum acordo entre as partes, bem como sanções igualmente aplicáveis no caso de descumprimento das expectativas definidas pelo grupo.

A guerra, porém, é, ao mesmo tempo, também a "terra da lei do mais forte". Isso significa dizer que nem sempre as regras do jogo se aplicam da mesma forma para todos os players.

Países poderosos não apenas determinam os valores e princípios que regem as normas dominantes, como, muitas vezes, utilizam instituições e regimes como forma de pressionar, punir e isolar atores mais fracos em contextos nos quais esses mesmos países poderosos nem sempre aceitam se submeter às regras que impõem a terceiros.

Essas são duas verdades incômodas da política internacional e também duas lições que vêm sendo reforçadas na Guerra da Ucrânia.

Desde o início do conflito e, particularmente nas últimas semanas, têm abundado notícias e relatos que sugerem abusos e atrocidades sendo cometidas em território ucraniano.

As imagens da cidade de Bucha escandalizaram pessoas em todas as partes do planeta. Estamos falando de 410 corpos que foram encontrados com indícios de assassinato sumário a menos de 40 km da capital Kiev. Cenas que foram comparadas pelo presidente Volodymyr Zelensky ao massacre de Guernica e retratadas, mundo afora, como indícios de uma tentativa de genocídio contra o povo daquele país.

Desde as Convenções de Genebra de 1949 e do estabelecimento do Estatuto de Roma, a partir do qual foi criado o Tribunal Penal Internacional, há, no sistema internacional, a previsão de que indivíduos possam ser responsabilizados pelas ações de um Estado ou de suas forças militares no contexto de conflitos armados.

São considerados crimes de guerra atos como, por exemplo, a tomada de reféns, homicídios intencionais, prática de tortura, tratamento desumano de prisioneiros de guerra e o uso de crianças soldado, entre outros. Também são passíveis de investigação atos envolvendo alvos civis, como o ataque a edifícios residenciais e comerciais, além de hospitais e escolas, bem como agressões a grupos em que não haja clara e justificada finalidade militar.

Essas são as bases que, nesse momento, fundamentam denúncias contra a Rússia e a partir das quais projetam-se as vozes de diversas lideranças.

São essas as leis em torno de que se constroem as noções de civilidade e barbárie, em torno de que procuramos sustentar os limites do razoável e proteger a dignidade humana.

Ao mesmo tempo, no entanto, são também essas as mesmas leis que se apresentam como forma de expor as hipocrisias da política global.

Como esquecer que Estados Unidos e Rússia estiveram, até outro dia, do mesmo lado no que tange ao reconhecimento de uma corte internacional com legitimidade para lidar com esse tipo de questão?

Os Estados Unidos nunca ratificaram o Estatuto de Roma e, portanto, sequer reconhecem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, onde, agora, tramitam as denúncias contra a Rússia. São também os norte-americanos que impuseram sanções ao tribunal quando ele ameaçou investigar crimes de guerra cometidos na guerra do Afeganistão.

Se vemos, agora, em uníssono, no Ocidente, o clamor para o célere (e necessário) julgamento dos denunciados no conflito da Ucrânia, isso não é, nem de longe, uma garantia de que estamos protegidos contra a violência.

É justo e fundamental que as investigações aconteçam. Denúncias graves como as que temos testemunhado merecem apuração urgente e punição exemplar, em caso de constatada responsabilidade. O nó na garganta, no entanto, não termina com eventuais repreensões, pois também passa por reconhecer a indignação seletiva a que estamos submetidos.

A dinâmica do século XXI consolidou, como bem disse Richard Haass, a lógica do "multilateralismo a la carte", na qual os países mais poderosos decidem ou não aderir às próprias regras que estabeleceram, de acordo com os interesses e conveniências de momento.

O que também faz concluir que tinha razão o poeta Augusto dos Anjos, em Versos Íntimos, quando nos alertou que "o beijo é a véspera do escarro" e que "a mão que afaga é a mesma que apedreja". Em relações internacionais, isso precisa ser relembrado todos os dias: não há espaço para torcida e sobra espaço para contradições.