Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
De olho na política doméstica, China e EUA dançam com o caos
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Acompanhamos, ao longo dos últimos dias, os desdobramentos da viagem de Nancy Pelosi a Taiwan. Na semana passada, aqui na coluna, já havíamos discutido esse tema, quando da conversa telefônica entre os presidentes Joe Biden e Xi Jinping.
A visita de Pelosi ocorreu apesar de ter sido publicamente desencorajada por Biden e por lideranças ligadas ao campo de segurança. Apesar dos riscos envolvidos, foi mantida porque a viagem interessava ao governo norte-americano para projetar força externa e reforçar o papel internacional dos Estados Unidos, sobretudo como resposta à aliança sino-russa no contexto da Guerra da Ucrânia.
A consistente aproximação entre Pequim e Moscou inaugurou um novo capítulo no processo de transição hegemônica. Não apenas colocou em evidência o declínio relativo dos Estados Unidos e sua incapacidade de garantir a estabilidade internacional unilateralmente, como também desnudou, de forma explícita, o interesse de China e Rússia em contestar a ordem vigente e adotar, de forma inédita, um tom abertamente revisionista.
O que não se pode perder de vista em uma situação como essa é que, para além das questões estruturais profundas que se demarcam pouco a pouco, há, embutido nas ações e reações de Estados Unidos e China, um jogo de cena que se desenrola com vistas a alimentar interesses políticos domésticos de mais curto prazo.
No caso norte-americano, o desafio é encontrar meios para desviar das cobranças internas e dos danos causados pela pressão inflacionária. Nesse sentido, duas dimensões merecem especial atenção. Ao visitar Taiwan, Pelosi se projeta como uma liderança democrata independente da Casa Branca, disposta, inclusive, a contrariar as recomendações do presidente —presidente esse que enfrenta severa crise de popularidade.
Ao mesmo tempo, sem se comprometer pessoalmente e exercendo o papel do "good cop" junto às autoridades chinesas, Biden mira o apoio para sua agenda de valores em política externa nas ambiguidades dos posicionamentos de Pelosi, que ora fala por si, ora fala em nome dos Estados Unidos. Usa a oposição à China como uma cola poderosa que constrói coesão junto à opinião pública do país e busca apoio bipartidário no contexto de um país polarizado, tal como tentou fazer no caso da Ucrânia.
Reforçar a narrativa da China como "um inimigo comum a ser combatido" contribui para o reforço psicológico da importância dos Estados Unidos no mundo, além de facilitar a terceirização de responsabilidades, no sentido de abrir espaço para que se reproduza a lógica de que as mazelas pelas quais passam os norte-americanos vêm de fora.
Biden tem como meta, no mínimo, não atrapalhar seu partido nas eleições legislativas de meio de mandato, que ocorrem em novembro de 2022. Caso perca o controle do Congresso, o presidente sabe que terá dificuldades em criar um legado positivo que seja útil para o pleito presidencial de 2024.
No caso chinês, a dinâmica doméstica também é fundamental para situar as duras respostas dadas à visita de Pelosi por Pequim, que vão de restrições comerciais à exercícios militares sem precedentes. Acontecerá, em breve, o encontro do Partido Comunista que deve reconduzir Xi para um terceiro mandato como presidente. Isso ocorre no momento em que o governo chinês se debate com os revezes da política de zero-covid, enfrenta uma importante crise de crescimento econômico, que é marcada por dificuldades no setor imobiliário, de atração de investimentos e de abastecimento das cadeias de produção, além de ter de lidar com a instabilidade regional provocada pelo conflito no leste europeu e as cobranças internacionais derivadas da relação com a Rússia.
O foco na integridade territorial da China, o apelo ao discurso soberanista e nacionalista, além da reação enérgica contra um competidor estratégico do porte dos Estados Unidos são compreensíveis, portanto, sob a ótica de Xi em defender capital político imediato.
Até o momento, o conjunto de ações e reações que assistimos parecem situados dentro de scripts ajambrados para marcar posição e favorecer domesticamente os líderes de cada país. O problema desse tipo de jogo é que, em política internacional, projetar poder e defender interesses esbarra, quase sempre, em percepções e interpretações, que podem conduzir a erros de cálculo, medidas desproporcionais e eventual perde de controle.
Em um mundo marcado por interdependência e por tantas crises sucessivas e simultâneas, Estados Unidos e China, ao olhar para dentro, dobram a aposta enquanto dançam com o caos.
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