Fernanda Magnotta

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Opinião

Sob pressão, Brasil vive tripla prova de fogo na crise Venezuela-Guiana

Existe um famoso provérbio que apregoa: "cuidado com o que deseja". A mensagem é clara: devemos ter responsabilidade antes de aspirar algo que, em princípio, não nos pertence.

Desde que tomou posse como presidente, nesse terceiro mandato, Lula causou muita polêmica ao manifestar-se sobre uma série de temas da política internacional. Sempre que pôde, defendeu a ideia de que o Brasil deveria assumir protagonismo na mediação de crises de grande porte, como no caso da guerra da Ucrânia. Sugeriu a criação de um "Clube da Paz", tratou do assunto com as mais importantes lideranças do planeta e teceu críticas à condução do processo de negociação em todas as oportunidades que teve, de encontros bilaterais com autoridades a discursos emblemáticos nas tribunas mais prestigiadas da arena global.

É compreensível que o governo brasileiro deseje promover o desenvolvimento do país e enxergue a democratização de vozes no sistema internacional e a diversificação de parceiros como parte dessa estratégia. É compreensível que o Brasil deseje promover sua vocação de potência global e não apenas de potência média. É compreensível que deseje ser tratado como um par digno de respeito pelos demais países, sobretudo os poderosos.

O "senão" nisso tudo é que, ao clamar para si tal reconhecimento, assumimos, por consequência, responsabilidades que estão acopladas a esse papel, e nos tornamos reféns das expectativas geradas sobre nós. Para sermos vistos como "adultos na sala", precisamos saber reconhecer e manejar, com honestidade e sensatez, nossos próprios instrumentos de exercer autoridade.

O iminente conflito na fronteira norte do Brasil, envolvendo Venezuela e Guiana, aparece, nesse contexto, como uma prova de fogo para a diplomacia brasileira. Quem deseja ser ouvido na gestão de crises profundamente estruturais de um mundo em transição hegemônica, precisará demonstrar habilidade de "desatar nós" em sua própria área de influência imediata.

A crise Venezuela-Guina representa um teste triplo para o governo Lula. É, em primeiro lugar, uma prova de coerência política. Lula recebeu Maduro em Brasília com pompa e circunstância. Validou-o como um líder democrático "prejudicado por narrativas", nas palavras do presidente brasileiro à época. Lula fez uma ginástica retórica das mais desmedidas em nome de um gesto de aproximação com um aliado histórico. Recebe, em troca, a sinalização do óbvio: Maduro é um líder autoritário disposto a qualquer ação política (inclusive uma guerra ilegal e irresponsável) para atingir objetivos eleitorais e de perpetuação no poder a qualquer custo.

Em segundo lugar, o teste ao Brasil é de liderança na região. Para além de impor ordem diante de uma disputa territorial em nossas divisas, a capacidade de articulação com os pares latino-americanos será um desafio crucial ao Brasil. Depois da crítica retumbante ao trato dado a Maduro no começo do ano, do fracasso em recriar a UNASUL, e da paralisia toda envolvendo o Mercosul, Lula precisará construir um entrosamento que vai além de fotos bem tiradas. As resistências estão por toda parte. De líderes da própria esquerda, como tem sido o caso de Chile e Colômbia, críticos de decisões do Brasil em vários momentos, e, claro, de quem vê o mundo sob outro prisma: Uruguai e, agora com Milei, Argentina. Criar coesão na América do Sul e despontar como voz respeitável, equilibrada e, principalmente, representativa e legítima custará ao governo brasileiro tempo e capital diplomático.

Por fim, a crise entre Venezuela e Guiana representa, ao Brasil, também um teste de astúcia no que concerne lidar com situações delicadas da geopolítica global que estão sendo importadas para nosso entorno. Se tínhamos credenciais e meios para lidar com o enfrentamento complexo envolvendo Estados Unidos e Rússia no leste europeu, eis a nossa hora de mostrar a que viemos. Como promover uma necessária reforma dos mecanismos de governança global sem tornar-se fantoche de países a quem interessa apenas o redesenho de um oligopólio em torno de si? Como lidar com lideranças críticas ao Ocidente, quando aliados ameaçam a sua própria segurança e estabilidade?

O Brasil de Lula desejou ser levado à sério na política internacional. Eis que o desejo se tornou realidade. Grandes ambições precisam vir acompanhadas do empenho de recursos de poder. Se o Brasil os têm de fato, agora chegou a hora de mostrar ao mundo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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