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Pessoas com poder causam raiva ao não gerar mudanças, afirma neta de Gandhi

A ativista Ela Gandhi - Jamil Chade/UOL
A ativista Ela Gandhi Imagem: Jamil Chade/UOL

Colunista do UOL

07/11/2019 04h02

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Os ensinamentos de Mahatma Gandhi estão sendo esquecidos e o mundo caminha na direção contrária ao que propunha o líder pacifista. O alerta é de Ela Gandhi, neta de uma das figuras mais importantes do século XX. Ela não esconde que a onda de intolerância e extremismo a preocupa. Mas insiste que renunciar à violência continua sendo a maneira mais eficiente de resolver problemas no mundo.

Ela Gandhi nasceu na África do Sul em 1940 e tinha oito anos quando seu avô foi assassinado. Ainda com doze anos de idade, Ela aderiu à tradição familiar de resistência pacífica e passou a fazer parte de manifestações contra o regime racista sul-africano. Em 1975, a Justiça decretou sua prisão domiciliar por nove anos. Mas nem isso a impediu de agir nos bastidores.

Diante da chegada de Nelson Mandela ao poder, foi eleita parlamentar. Ativista, ela assumiu a função de levar adiante a palavra do avô.

Nesta semana, com 79 anos de idade, ela foi a principal palestrante na Geneva Peace Week, um evento que reúne centenas de ativistas e pesquisadores na sede da ONU. A sul-africana falou com exclusividade com a coluna sobre os protestos que tomam conta de vários países e de líderes que difundem o ódio.

Eis os principais trechos da entrevista:

UOL - Nas últimas semanas, temos visto protestos em diferentes partes do mundo e populações com uma enorme raiva do poder público e das condições de vida. Por qual motivo a sra. acredita que há uma explosão dessas massas?
Ela Gandhi - Tenho visto essa mesma raiva em meu país, a África do Sul. As pessoas estão bravas. Há muitos motivos para isso. Os líderes responsáveis por dar respostas às populações não estão cumprindo suas funções. As pessoas com o poder de promover mudanças reais não estão agindo dessa forma. Essa é certamente uma das motivações dessa explosão.

Mas eu devo dizer que essa raiva não é o caminho a ser seguido. Isso não conduzirá a soluções positivas. Quando se faz coisas no calor da ira, nos arrependemos depois. Precisamos da lógica e saber o que queremos fazer. Também precisamos sair em busca do motivo que está conduzindo essa ira. Essa raiva precisa ser traduzida em energia positiva.

Há ainda um outro fator importante. Não podemos pensar que é a outra pessoa o motivo da raiva que sentimos. É o que aquela pessoa fez. Há uma diferença entre a pessoa e o que ela faz. Quando conseguimos separar as duas coisas, então entendemos qual é a ação específica que causa a ira. É a ação que está errada. Não a pessoa.

E qual a implicação disso?
Enquanto pensarmos que, ao eliminar aquela pessoa, o motivo da minha ira estará eliminado, não chegaremos a lugar algum. O que não pensamos é que aquela ação que te deixa bravo pode ser conduzida por outra pessoa. Portanto, se separarmos a pessoa da ação, atingimos um resultado maior.

Sobre essas massas que sentem essa ira hoje, não estou dizendo que elas não tem motivo de protestar e de estar enfurecidas. Mas a mudança real não ocorrerá ao atacar o inimigo. Mas ao lidar com ação.

Por essa lógica, uma mudança real leva mais tempo para ocorrer que uma revolta. Como a sra. então convence uma pessoa que está sendo injustiçada, oprimida ou vivendo sérias dificuldades com sua família para que espere? A sra. mesmo esteve por nove anos em prisão domiciliar. Como lidar com o sentimento de injustiça?
Muito depende da espiritualidade. No meu caso, se eu não acreditasse no verdadeiro poder da Justiça, se eu não acreditasse que qualquer sofrimento que eu passasse era um passo para a nossa liberação, eu não aceitaria aquele sofrimento. Não significa não agir. O que eu não posso é agir de forma irracional. Isso não leva ninguém a lugar algum. Não resolve o problema.

Hoje, chefes de Estado estão entre os principais promotores do discurso de ódio. Qual o impacto que a sra. acredita que isso pode ter?
Quando falamos de líderes, temos que pensar antes sobre como eles chegaram la. Quem são as pessoas que os transformaram em líderes. As pessoas precisam pensar: queremos líderes que promovem a violência? Ou temos de encontrar outros líderes? Precisamos escolher qualidades e critérios. Quando isso for definido por uma sociedade, o nome do líder é o que menos importa. Hoje, o critério é dinheiro e quem fala mais forte. Mas as pessoas deixaram de olhar para além dos discursos. Em buscar o significado daquelas palavras. Enquanto buscarem falsos atributos de um líderes, vão continuar elegendo essas pessoas.

Sabe, na Índia, Gandhi dizia que tivemos uma potência colonizadora por termos deixado que ela se instaurasse. Um punhado de pessoas controlavam milhões de pessoas.

Diante desse cenário, a sra. acredita que o mundo evoluiu desde que seu avô promoveu seu pensamento pacifista?
O mundo vai na direção oposta às ideias de Gandhi. Estamos retrocedendo. Infelizmente, a mensagem do meu avô não chegou a todos. Mesmo para aqueles que conhecem sua mensagem, eu tenho a impressão de que ficaram mais com a parte externa do pensamento que seu entendimento mais profundo. Há quem pense que, se você comer carne, você não é um seguidor de Gandhi. Se usar as roupas ou não. Mas a verdadeira pergunta é uma só: você é fiel, verdadeiro em seu pensamento? Você de fato sabe amar? Você aceita o outro como tal? Você abre mão da violência?

O que é renunciar à violência hoje?
Não se trata apenas da ausência da violência. Trata-se de um comportamento profundo que envolve como você se comunica com as pessoas, como você as trata. Tudo isso te define como uma pessoa violenta ou não. Portanto, estamos falando de toda sua personalidade. O que define a renúncia à violência é uma verdadeira cultura. Não apenas não recorrer às armas.

Essa cultura tem ainda espaço para sobreviver?
Essa cultura tem atributos muito claros. Mas não se trata de uma cultura com metas inalcançáveis. Qualquer um com compromisso pode atingir. Precisamos levar a real mensagem de Gandhi para as populações. Não está ocorrendo. Vemos um movimento extremista cada vez mais forte. Há uma intolerância crescente. Recorre-se à violência com muita facilidade. Sabe, pensamos que a não-violência não vai resolver os problemas.

Mas um simples exemplo está na casa de cada um de nós. É mais fácil dar uma bronca numa criança que não se comporta, que sentar e explicar por qual motivo tal comportamento é necessário. O problema é que essa segunda opção leva mais tempo. Mas, no final, o resultado é melhor. Sempre.

O mesmo padrão vemos nas comunidades e nos governos, que preferem recorrer à violência como resposta. E não em dar uma solução para um confronto.

Quando eu disse ao meu filho que eu iria entrevistar a neta de Gandhi, ele me fez um pedido: pergunta ela o que exatamente quer dizer a frase "Seja a mudança que você quer ver no mundo".
Vou contar uma história que explica isso. Num certo dia, uma família veio ver meu avô e disse que seu filho estava com diabete, mas não parava de comer doces. Gandhi então disse: traga o garoto para falar comigo em duas semanas. 15 dias depois, a família levou o garoto. O menino então ouviu de meu avô de que ele não deveria comer açúcar e que aquilo iria ser ruim para ele. Minutos depois, a conversa tinha acabado.

Mas os pais foram perguntar a Gandhi o motivo pelo qual ele pediu que a nova visita ocorresse apenas duas semanas depois do pedido. E ele respondeu: "é que, há duas semanas, eu estava comendo doce". Ou seja, primeiro ele teria de parar de comer aquilo para poder dizer ao menino que ele não comesse doce. Isso é o que significa ser a mudança que você quer para o mundo. Não se pode dizer a pessoas o que fazer sem seguir tal postura.