Missão chefiada por Santos Cruz quebrou normas e ignorou registros, diz ONU
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Resumo da notícia
- General dirigiu operação militar na República Democrática do Congo
- Forças da ONU foram comandadas por Santos Cruz entre 2013 e 2015
- Auditoria das Nações Unidas apontam falhas em diversos procedimentos
- Falhas se deram no patrulhamento e em registros das operações militares
- Foram ignorados relatórios sobre letalidade e avaliações de operações
As forças de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) na República Democrática do Congo (RDC), chamadas pela abreviação MONUSCO, sofreram deficiências consideradas como "críticas" em sua gestão, que passou pelo comando do general Carlos Alberto Santos Cruz. Ele ocupou a chefia da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro.
Uma auditoria realizada pelo Escritório de Serviços de Supervisão Interna da ONU e obtida pelo UOL aponta a falta de levantamentos sobre as operações militares, e ainda o desrespeito à norma que exigia que autoridades civis e de direitos humanos fossem consultadas antes de operações. A MONUSCO foi a primeira operação armada da ONU na RDC e a maior missão de estabilização da entidade.
Não existia também, segundo as Nações Unidas, a prevenção sistemática de possíveis danos colaterais. Além disso, a frequência de patrulhamento estava abaixo das metas estabelecidas.
Santos Cruz foi procurado pelo UOL, mas não respondeu os questionamentos da reportagem até o fechamento.
O exame da operação se refere ao período entre janeiro de 2015 e setembro de 2016. Em mais da metade do tempo avaliado, as forças eram comandadas pelo general brasileiro. Ele ocupou o posto de 2013 a dezembro de 2015, num momento que foi considerado como chave para o conflito.
Após deixar o governo brasileiro, em 2019, o general voltou a prestar serviços à ONU e, na semana passada, entregou à chefia da entidade um informe sobre os desafios das tropas de paz no país africano. O foco era a onda de ataques a civis na região de Beni.
Danos colaterais desconhecidos
Mas, no informe sobre a gestão das operações, um aspecto que preocupou especialmente a auditoria foi a falha encontrada na preparação de estimativas de danos colaterais, nas avaliações de danos de batalha e mesmo nas revisões sobre as operações, uma vez terminadas.
Pelas diretivas da ONU, exige-se que "os militares estimem os danos colaterais antes de cada ação letal e conduzam avaliações dos danos de batalha para estimar com precisão os efeitos resultantes do uso da força letal". A instrução "também exige que os militares conduzam uma análise pós-ação para as grandes operações militares, a fim de avaliar a eficácia das operações e a sua utilização como lições aprendidas em operações futuras".
Até aquele momento, nove grandes operações militares tinham sido realizadas envolvendo força letal, como artilharia e fogo de morteiros e helicópteros de ataque para proteger civis na área do Beni, na RDC.
Entretanto, os militares não tinham relatórios de revisão pós-ação para quatro das nove principais operações militares. Também inexistiam provas de suas avaliações de alvos para nenhuma das nove operações.
"A componente militar informou que as estimativas de danos colaterais foram preparadas no Quartel-General da Força durante o processo de definição dos alvos. Contudo, não existiam registros do processo de alvo para as nove operações", alertou a auditoria.
Sem os registros, a auditoria ainda lembrou que não haveria como melhorar a eficácia de operações futuras e nem "ter informação adequada e fiável para avaliar a oportunidade e eficácia das suas operações militares". A MONUSCO, segundo o informe, aceitou a recomendação.
Operações militares à revelia de autoridades civis
A conclusão do levantamento é de que existiam estruturas e diretrizes adequadas para orientar operações militares para a proteção de civis. Mas nem os processos e nem mecanismos estabelecidos eram sempre cumpridos. Portanto, não havia como saber se eram "eficazes".
Os militares indicaram que, devido à necessidade de assegurar a confidencialidade, não envolveram os departamentos civis da ONU ou de Direitos Humanos no planejamento de operações militares. Mas garantem que eles foram informados. Para a auditoria, isso não era suficiente.
"Devido à falta de envolvimento sistemático dos componentes civis no planejamento de operações militares, existia o risco não mitigado de as estratégias de mitigação e ações corretivas adequadas não serem integradas na execução destas operações", alertou a auditoria.
Em suas recomendações, o levantamento pediu que a MONUSCO implementasse a estratégia das Nações Unidas para a proteção da população civil.
Somente em fevereiro de 2017 as primeiras reuniões com os representantes civis das missões foram realizadas.
Falta de registro
Outra deficiência registrada pela auditoria foi a falta de registros sobre as operações. "O componente militar não registrou as ações tomadas em resposta aos alertas e relatórios recebidos, incluindo descrições, datas e horários das suas ações", alertou o documento.
A explicação dada pelos militares era de que não estavam "totalmente conscientes dos procedimentos de atualização do sistema" e aceitaram a recomendação apresentada.
Patrulhamento insuficiente
A análise realizada nas tropas no país africano revelou ainda que "apesar do padrão de aumento da violência, como o estupro e o rapto de civis à noite, os militares não conduziram patrulhas noturnas suficientes para lidar com as ameaças prevalecentes".
"Das 51.117 patrulhas realizadas em áreas afetadas por conflitos no ano financeiro de 2015/16, apenas 30 por cento (15.423) eram patrulhas noturnas", alertou.
Num dos locais examinados, o contingente militar de patrulhas realizou entre 29 de Maio a 18 de Junho de 2016 apenas três operações durante a noite, com 55 pelo dia.
"Isso ocorreu porque o componente militar não ajustou as suas patrulhas com base em ameaças emergentes e a missão não tomou medidas eficazes para assegurar que os militares tivessem equipamento noturno funcional em conformidade com os respectivos memorandos de entendimento", constatou.
Um exemplo foi o contingente militar em Beni e Bunia, que se queixara da falta de dispositivos de visão noturna. A auditoria descobriu que os dispositivos noturnos "estavam em caixas seladas, sem baterias e sem outras peças sobressalentes para os tornar funcionais".
"Como resultado, não havia garantias adequadas de que a componente militar tivesse respondido à tempo às ameaças contra civis, que ocorreram na sua maioria entre 18h e 6h. Por exemplo, todos os grandes ataques na área de Beni e 59% dos 173 incidentes e violações graves contra civis em Bunia durante o período de janeiro a setembro de 2016 ocorreram à noite", apontou a ONU.
Missões deram projeção a generais brasileiros
Operações de paz lideradas pelas Forças Armadas do país deram projeção a generais brasileiros. Vários deles acabaram em postos estratégicos no atual governo de Jair Bolsonaro, principalmente aqueles que passaram pela missão comandada pelo Brasil no Haiti (MINUSTAH).
Entre 2003 e 2017, o Brasil destacou 37 mil soldados para o país caribenho e vários dos comandantes foram recompensados.
O Gabinete de Segurança Institucional, por exemplo, foi assumido pelo general Augusto Heleno, primeiro comandante da MINUSTAH, entre 2004 e 2005.
A Secretaria de Governo ficou com o próprio Santos Cruz, que liderou as tropas no Haiti de 2007 a 2009. Floriano Peixoto, Fernando Azevedo e Silva e Edson Leal Pujol também passaram pelo Haiti e hoje estão em cargos de alto escalão no governo.
Mas se oficialmente a ordem era a de declarar o papel fundamental desempenhado pelo Brasil para estabilizar o país no Caribe, documentos confidenciais publicados pela Folha de S.Paulo, em maio de 2019, revelaram suspeitas de excessos cometidos contra a população civil. Isso teria ocorrido em operações em favelas do Haiti, em 2005.
Também em 2019, as pesquisadoras Sabine Lee, da Universidade de Birmingham (Reino Unido), e Susan Bartels, na Universidade Queen's, Ontário (Canadá), publicaram detalhes sobre como as tropas internacionais abandonaram dezenas de filhos no Haiti.
O conflito na RDC
A violência no país africano começou ainda nos anos 90 e tem uma relação direta com os impactos regionais do genocídio em Ruanda, em 1994. Milícias foram formadas e o governo perdeu o controle sobre regiões inteiras do país.
Algumas estimativas apontam que 3 milhões de pessoas podem ter sido vítimas da guerra, enquanto mais de 5 milhões se transformaram em refugiados. Em um certo momento do conflito, mais de 70 grupos armados diferentes operavam pelo país.
O mandato do componente militar da MONUSCO era o de proteger a população civil do Congo da violência física de grupos armados e ajudar a restaurar a autoridade do Estado. No momento da auditoria, a missão contava com 17,4 mil homens, incluindo 16,7 mil militares do contingente e 471 observadores militares.
Os orçamentos de 2014/15 e 2015/16 para o componente militar foram de US$ 602 milhões e US$ 549 milhões, respectivamente.
*colaborou Chico Alves, no Rio
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