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Jamil Chade

Protestos se espalham e ruas gritam: não conseguimos respirar

Uma manifestante reage durante um protesto após a morte de George Floyd, em Boston, Massachusetts - BRIAN SNYDER/REUTERS
Uma manifestante reage durante um protesto após a morte de George Floyd, em Boston, Massachusetts Imagem: BRIAN SNYDER/REUTERS

Colunista do UOL

03/06/2020 09h49

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Se as manifestações que ocorreram em 2019 em dezenas de cidades pelo mundo tinham sido suspensas por conta do temor da morte e de um vírus desconhecido, foi justamente a pandemia que acentuou e escancarou as injustiças que estavam na base de muitos daqueles protestos e, agora, alimentam em parte a eclosão social.

Não foram poucos os governos que respiraram aliviados diante das quarentenas. Pensaram que a ira de seus cidadãos se diluiria, assim como o falso mito sobre o destino do vírus. Mas as reivindicações não desapareceram. E, agora, ganharam um traçado firme de denúncia ao escancarar os desequilíbrios estruturais e racismo.

O novo normal pós-pandemia não pode ser o mundo de antes. Aquele mundo é insustentável, insuportável. Assim que o vírus chegou, ele deixou isso transparente. São os negros brasileiros quem mais têm chance de morrer, de bala, de velhas doenças ou de um novo vírus. São as periferias francesas as que não encontraram o estado. E são as dezenas de bairros negras nos EUA que acumularam cadáveres.

Alguém poderia dizer: como ousam dizer que essa injustiça endêmica estava escondida? Afinal, ela estava presente na vida de todos, na cozinha de muitos, nas calçadas do centro, nos pratos servidos, nos banheiros cheirosos. Estava visível no gandula que busca a bola na quadra de tênis do sofisticado clube, nos carregadores de malas nos subsolos de aeroportos que apenas sonham em viajar ou nas mãos daqueles que colhem as uvas para vinhos excêntricos que jamais poderão tomar.

Ela estava evidente em cada operação policial. Em cada visita à prisão.

Mas o vírus deixou claro que o pior cego é o que não quer ver.

Com seu rastro de morte, ele ainda conduziu milhões ao desemprego e provou que o estado mínimo é também sinônimo de abandono. Um abandono que afeta de forma desproporcional aqueles que mais o necessitam. Há poucos dias, o FMI, o oráculo do sistema capitalista, já dizia: se não houver um socorro massivo a milhões de pessoas, a pandemia abrirá uma nova era de protestos sociais.

O que se vê nos EUA não é apenas uma insurreição pela dramática morte de um homem negro, o que por si só já seria motivo para sair às ruas. Os eventos contaminam outras partes do mundo por se tratar também de uma reação de indignação diante da falência generalizada de um sistema. De uma democracia que jamais cumpriu sua promessa de dar a todos a mesma voz. De um racismo que jamais desapareceu e ganhou força na voz de líderes que chegaram ao poder disseminando ódio. Hoje, eles preferem o bunker.

Pelas vozes de manifestantes, ouvimos frases que ressoam em outros cantos do mundo: já cansei de chorar.

Milhares deixaram as periferias abandonadas para tomar as ruas de Paris, Lyon e outras cidades francesas, lembrando de casos similares da morte de seus pares nas mãos da polícia local. As barricadas desafiaram até mesmo as regras até então respeitadas do distanciamento social. Na Bélgica, o busto do rei Leopoldo II foi vandalizado em Bruxelas, num sinal claro de feridas do passado estão abertas em bairros que se transformaram em guetos.

Tampouco faltaram atos em Manaus, Haia e em outras cidades, cada qual com sua reivindicação.

Pelo mundo, as ruas gritam: estamos sem ar. Pelo mundo, as ruas alertam que a imunidade de uma democracia não virá da polícia. Mas da garantiria de direitos e da promessa de que existe um futuro digno.

Ao chamar a explosão dessa ira de irracionalidade, líderes parecem não se dar conta que irracional é servir a um sistema que os da apenas um direito: o da morte severina, "que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia".