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Jamil Chade

Entidades europeias abrem processo para suspender acordo com Mercosul

Salles admitiu nesta segunda-feira que será preciso "adotar uma estratégia diferente" para combater o aumento no desmatamento - Adriano Machado/Reuters
Salles admitiu nesta segunda-feira que será preciso 'adotar uma estratégia diferente' para combater o aumento no desmatamento Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

27/06/2020 04h00

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Questionado, o acordo comercial entre o Mercosul e a Europa passa a ser alvo de um processo formal em Bruxelas. Entidades de direitos humanos e ambientais da UE entraram com uma queixa formal diante da Comissão Europeia para que o tratado seja anulado. O motivo: as políticas de Jair Bolsonaro no setor de direitos humanos e meio ambiente.

O acordo, depois de 20 anos de negociações, foi assinado em meados de 2019. Mas, imediatamente, o tratado que abre o comércio entre os dois blocos passou a ser alvo de críticas por parte de diferentes grupos. Três parlamentos já votaram moções contra o projeto, o que demonstra a dificuldade que governos terão para ratificar o acordo. Para que entre em vigor, todos os 27 países da UE terão de estar de acordo com os termos do pacto.

A assinatura do tratado foi vendida por Brasília como um trunfo da política externa de Ernesto Araújo, na esperança de mostrar que o país não estava isolado.

Os europeus, porém, admitem nos bastidores que o Brasil "entregou tudo" e cedeu em alguns dos principais pontos da negociação. Na prática, os exportadores europeus terão maiores vantagens que os exportadores do Mercosul, limitados por cotas consideradas como insuficientes para o setor agrícola. O argumento de que a Europa saiu ganhando tem sido usado pela Comissão Europeia para tentar convencer os demais parceiros dentro do bloco de que o pacto é vantajoso.

Mas a oposição ganha contornos cada vez claros. Nesta semana, cinco entidades europeias entraram com uma queixa em Bruxelas oficializando o pedido para que o processo seja suspenso.

A iniciativa conta com a Federação Internacional de Direitos Humanos, a ClientEarth, Fern, Veblen Institute e La Fondation Nicolas Hulot pour la Nature et l'Homme. A documentação foi entregue ao Ombusdman da UE, um canal pelo qual a sociedade civil pode questionar o funcionamento da Comissão Europeia e exigir mudanças.

O principal argumento é de que a UE fechou o acordo sem que uma avaliação ambiental completa tivesse sido realizada, deixando ainda de fora aspectos de direitos humanos. "Ficou claro que a Comissão concluiu as negociações com o Mercosul sem ter concluído previamente o processo de avaliação ambiental", diz o processo obtido pela coluna.

Além disso, os documentos demonstrariam que a Comissão Europeia "conduziu as negociações sem informações apropriadas e atualizadas sobre os potenciais impactos sociais, ambientais e econômicos do acordo comercial proposto".

As entidades indicaram que o primeiro intercâmbio de cartas ocorreu em julho de 2019 e que, nos meses seguintes, as queixas subiram de tom em diferentes reuniões.

"A falha em levar em conta dados ou eventos recentes corre o risco de criar resultados incorretos e tendenciosos. Isto é particularmente crítico nas diferentes partes da análise ambiental, onde o estudo não leva em conta os dados mais recentes sobre desmatamento e as mudanças na governança florestal", alertam.

De acordo com a entidade, o único relatório interino realizado pela UE sobre o desempenho ambiental do Mercosul se refere a dados de 2016. O documento, portanto "não inclui dados recentes sobre a taxa de desmatamento referente ao Brasil, bem como informações recentes sobre mudanças feitas em sua estrutura legal florestal".

A queixa destaca como, somente em junho de 2019, as taxas de desmatamento na Amazônia brasileira aumentaram em 88% em comparação com o mesmo mês do ano anterior. "Após uma mudança de governo em 2019, o desmatamento no Brasil aumentou devido à inversão das políticas e estruturas legais e institucionais de proteção florestal existentes", indicaram.

"Mudanças no código de mineração do Brasil poderiam abrir 9,8 milhões de hectares de área protegida ao desenvolvimento da mineração até 2025", destacam, citando estudos.

"A nova administração governamental afrouxou ainda mais os controles ambientais e a fiscalização. Em seus primeiros meses, a nova administração dissolveu os departamentos climáticos e florestais; transferiu os Serviços Florestais Brasileiros (anteriormente abrigados pelo Ministério do Meio Ambiente) para o Ministério da Agricultura, e procurou à força transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura", completaram.

As entidades ainda acusam a UE de mencionar apenas "brevemente os incêndios na Amazônia em agosto de 2019, sem tirar conclusões ou avaliar se existe o risco de que surjam novas tendências nos próximos anos".

Elas também se queixam de que "não há dados sobre o corte ilegal de madeira e sua contribuição para a mudança do uso da terra".

O processo também destaca que, nos informes oficiais, a UE cita números de 2013 sobre o uso de pesticidas e fertilizantes, o que não refletiria as novas tendências. "Por exemplo, o Brasil aprovou recentemente centenas de novos pesticidas", alertam.

Para completar, o exame oficial "não menciona a existência de violações dos direitos dos povos indígenas, que são apoiados por provas generalizadas". "É particularmente problemático à luz do recente aumento de abusos e assassinatos contra as populações indígenas", alertam.

Conclusão e suspensão

Os documentos entregues à Comissão Europeia concluem, portanto, que os diplomatas de Bruxelas "conduziram as negociações na ausência de uma análise aprofundada, sólida e detalhada dos impactos potenciais dos acordos, com base em dados atualizados e apropriados, e sem um processo transparente e participativo".

"Como resultado, a Comissão não pode garantir que o Acordo não conduzirá e/ou contribuirá para a degradação social, econômica, ambiental e violações dos direitos humanos na UE e nos países do Mercosul", alertam.

"Consideramos que o fracasso da Comissão em concluir uma avaliação de impacto de sustentabilidade antes da conclusão das negociações do Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul constitui má administração", denunciam.

Diante das constatações, o grupo pede que a Comissão se abstenha em propor a assinatura do tratado. Caso isso não seja atendido, as entidades querem a suspensão do processo de ratificação.