Governo Bolsonaro omite em informe à ONU esvaziamento no combate à tortura
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O governo brasileiro submeteu no dia 20 de agosto respostas ao Comitê contra a Tortura da ONU, saldando um atraso de mais de uma década na entrega de informes. Em 2009, o organismo havia questionado o país sobre uma série de aspectos referentes ao combate à tortura. Mas o Brasil entregou uma resposta apenas no mês passado.
No documento, porém, o governo de Jair Bolsonaro indica que suas respostas não incluem os acontecimentos na atual administração e que as respostas tratam de eventos e leis no país entre 2000 e 2017.
Ao fazer o recorte em um período pré-Bolsonaro, as respostas à ONU apontam para avanços no estabelecimento de regras e mecanismos para o combate à tortura no país. O documento não menciona a atitude denunciada pela sociedade civil de desmonte de uma parcela dos órgãos de fiscalização da tortura e muito menos os comentários do próprio presidente de apologia a torturadores.
Procurado, o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos explicou que, "apesar do relatório ter chegado ao Comitê oficialmente apenas este ano, ele teve o escopo de elaboração compreendido entre 2000 e 2017 no formato de um relatório de Estado submetido a um organismo internacional".
"O documento possui regras metodológicas, inclusive temporais, para cada ao órgão de tratado. Não obstante, a entrega do relatório brasileiro ao Comitê de Combate à Tortura contendo questionamentos encaminhados ao Brasil em 2009 e deixados sem resposta pelos governos anteriores já representa um grande avanço na prestação de contas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos humanos", destacou.
"Reiteramos o contido no informe do Estado brasileiro e comunicamos que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura está em funcionamento, segundo a normativa vigente", garante a pasta de Damares Alves.
De acordo com o documento oficial do governo entregues em Genebra, em 2013 uma lei criou o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. O Brasil indicou que, por tal iniciativa, o estado "consolida o estabelecimento de uma rede de atores nacionais e locais que favorece a integração das ações de prevenção e combate à tortura".
O informe destaca como a primeira reunião do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ocorreu em 27 de agosto de 2015. Também aponta para a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura como um órgão colegiado composto por representantes do Poder Executivo Federal e da sociedade civil. "Seu objetivo é prevenir e combater a tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes", disse.
Quanto ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ele também foi criado em 2013 e tem como missão realizar inspeções.
O documento destaca ainda como o mecanismo "mapeou mais de 3.000 lugares de privação de liberdade em todo o Brasil, tais como prisões, penitenciárias, instalações sócio-educativas, centros de triagem, abrigos infantis, instituições de residência prolongada, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas, etc".
Desmonte
O que o documento não revela é que a chefe do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, é acusada pela sociedade civil e até mesmo pela própria ONU de tentar esvaziar o Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT), retirando o apoio administrativo.
Num decreto emitido pelo governo, os peritos do Mecanismo deixaram de ser funcionários e passaram a ser apenas voluntários, sem salário. Alguns dos peritos ainda acusaram a pasta de impedir viagens do grupo para fazer fiscalizações.
Ainda no ano passado, a ONU afirmou estar preocupada com a situação e pediu explicações por parte do governo. "Há sérias preocupações de que essas medidas enfraqueçam a prevenção da tortura no país", disse a entidade em 2019.
Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, qualificou de "risível" o informe brasileiro diante da data de corte dos dados apresentados. Segundo ele, de fato até 2017 houve um avanço no trabalho do mecanismo, que recebia apoio político e logístico.
"É evidente que, com o que foi feito a partir de 2017 no governo Temer e Bolsonaro, ficaria muito vergonhoso apresentar um parecer com as dificuldades para a existência do mecanismo", disse Sottili, que foi Secretário Especial de Direitos Humanos.
Segundo ele, houve uma tentativa clara do governo de "destruir o mecanismo de combate à tortura". A iniciativa acabou gerando resistência e uma mobilização de diferentes forças políticas, inclusive na ONU.
Sottili avalia que o governo teve de recuar. Mas sem abrir mão de um enfraquecimento do mecanismo. Hoje, o órgão opera graças a ações judiciais e liminares. Os conselheiros ficaram sem salários por dois meses e aqueles que permaneceram ficaram sem o apoio técnico da Secretaria de Direitos Humanos.
Os peritos, segundo ele, ainda estariam com sérias dificuldades para serem recebidos em suas vistorias pelos estados. "Todas as dificuldades têm o objetivo de destruir o mecanismo. É um momento triste, de resistência", disse.
Num comunicado emitido pela entidade Justiça Global, em março de 2020, Damares é acusada ainda de ter "desrespeitado a sociedade civil" na reunião do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
"Em desrespeito aos procedimentos regimentais do CNPCT e sem ter ocorrido a abertura formal da reunião, a Ministra Damares, em primeira e única aparição na reunião do comitê do qual é presidente, iniciou a reunião sem quórum adequado e, sem respeitar a pauta votada no dia anterior, iniciou a votação do Edital de seleção dos peritos do Mecanismo, com o objetivo de destruir a atividade, tirando a remuneração, baseada num decreto ilegal cuja o veto já foi decidido pelo judiciário", afirmou.
Essa não é a primeira vez que o governo entrega informes para a ONU desatualizados. Nas últimas semanas, a coluna revelou como o Brasil tem quitado atrasos históricos na apresentação de documentos sobre direitos humanos na ONU. Mas, ao faze-lo, o governo não inclui uma avaliação dos atuais programas.
A justificativa do país é de que os informes foram realizados no início de 2019 e que, portanto, não haveria tempo para incluir os atuais acontecimentos. O governo também explica que a entrega em meados de 2020 ocorre apenas por uma questão de procedimentos burocráticos e exigências de tradução.
A sociedade civil, porém, já qualificou os relatórios como sendo "informes fake" do governo e que teriam o objetivo deliberado de esconder o que de fato estaria ocorrendo no país em termos de direitos humanos.
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