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Brasil e EUA articulam aliança mundial antiaborto

Jair Bolsonaro e Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, em foto de março - Alan Santos/Presidência da República
Jair Bolsonaro e Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, em foto de março Imagem: Alan Santos/Presidência da República

Colunista do UOL

02/09/2020 15h21

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Resumo da notícia

  • Projeto em negociação reafirma postura de vetar o aborto como ferramenta de planejamento familiar
  • Objetivo é de lançar declaração no dia 8 de setembro, com adesão de governos de outros países
  • Entidades pedem ao Congresso para que chanceler Ernesto Araújo explique aliança com EUA

Os governos do Brasil e dos EUA (Estados Unidos) querem liderar uma aliança internacional que estabelece princípios básicos na questão da saúde da mulher. A iniciativa, porém, é dominada pela vontade dos governos em reafirmar a rejeição ao aborto e a defesa da família.

Os países, ao assinarem a proposta, enfatizam que "em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar " e que "quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional".

O documento será adotado no próximo dia 8, depois de meses de uma intensa aproximação do governo brasileiro às alas mais conservadoras da sociedade americana.

Nesta quarta-feira, um requerimento foi apresentado pela entidade Conectas Direitos Humanos à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e à Comissão de Direitos Humanos do Senado "para que convoquem o Ministro de Estado de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para prestar esclarecimento sobre iniciativa copatrocinada pelo Brasil e Estados Unidos da América".

Procurado, o Itamaraty não se pronunciou até o momento. Em seu discurso na Fundação Getúlio Vargas, há dez dias, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, fez referência ao projeto. Segundo ele,"Brasil e Estados Unidos estão conjuntamente patrocinando a Declaração do Consenso de Genebra para assegurar ganhos significativos de saúde para a mulher e defender a família".

O projeto surge depois de uma polêmica em relação ao papel do governo diante do caso de uma garota de dez anos que, depois de abusada sexualmente, teve dificuldades para conseguir realizar um aborto legal. O Ministério da Saúde, segundo reportagem de Maria Carolina Trevisan, publicou uma portaria que dificulta o acesso ao aborto legal.

Projeto internacional

Agora, a ofensiva torna-se internacional. O rascunho do texto obtido pela coluna e que será anunciado fala dos "desafios para defender o direito das mulheres aos mais altos padrões de saúde alcançáveis".

Em Genebra (Suíça) e em capitais pelo mundo, americanos e brasileiros têm tentado convencer governos a aderir ao projeto. Por enquanto, menos de dez países se comprometeram com a iniciativa.

Mas há a esperança de que o grupo possa a chegar a ter cerca de 30 países. O foco da ação diplomática se concentra em países como Arábia Saudita, Iemen, Líbia, Iraque e Egito, conhecidos por serem criticados duramente pelo tratamento que conferem às mulheres na sociedade.

Países dominados pela ultradireita, como Hungria e Polônia, também negociam sua participação. Na América Latina, apenas o Haiti, Guatemala e o Paraguai aparecem em uma lista de eventuais apoiadores.

Foco na proibição do aborto

O centro da iniciativa, porém, é a rejeição ao aborto. Num dos trechos, os governos "expressam a prioridade essencial de proteger o direito à vida, comprometendo-nos a esforços coordenados em fóruns multilaterais". Ou seja, se comprometem em agir na ONU (Organização das Nações Unidas), OMS (Organização Mundial da Saúde) e outras entidades para estabelecer isso como princípio.

O texto vai além. A aliança reafirma que "não há direito internacional ao aborto, nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto, consistente com o consenso internacional de longa data de que cada nação tem o direito soberano de implementar programas e atividades consistentes com suas leis e políticas".

Também se estabelece que "a criança precisa de salvaguardas e cuidados especiais, antes e depois do nascimento" e que "medidas especiais de proteção e assistência devem ser tomadas".

Há um compromisso que se estabelece para "melhorar e assegurar o acesso das mulheres à saúde e ao desenvolvimento". Mas o mesmo parágrafo completa: "sem incluir o aborto".

O "papel crítico" da mulher na família

Ao longo da declaração, o termo "família" vem sempre acompanhando a situação da mulher. Em nenhum lugar do trecho o termo "igualdade de gênero" aparece. Os autores preferem falar que a "partilha igualitária de responsabilidades para a família por homens e mulheres e uma parceria harmoniosa entre eles são críticos para seu bem-estar e o de suas famílias".

A declaração também é um reforço ao papel da família, considerada pelos governos como "o grupo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado". Nessa família, as "mulheres desempenham um papel crítico".

Para a Conectas, porém, uma audiência pública virtual é necessária antes da aprovação para que o Senado Federal possa "acompanhar tal iniciativa da política externa brasileira e primar pela coerência entre os direitos legalmente garantidos no Brasil em termos de saúde sexual e reprodutiva e a anunciada iniciativa das diplomacias brasileira e americana".

"O anúncio feito pelo embaixador americano traz preocupações à Conectas considerando que nesta mesma semana o governo federal, por meio do Ministério da Saúde, editou Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, que "Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS", disse Camila Asano, diretora de Programas da Conectas.

Sociedade civil critica medida sobre justificação de aborto no Brasil

Cerca de 350 entidades da sociedade civil se manifestaram contrárias à portaria que impõe entraves à realização de procedimento previsto em lei de interrupção de gravidez em caso de estupro.

Na nota, as entidades afirmam ser "inaceitável que o governo federal faça uso de um instrumento infralegal para constranger mulheres e meninas vítimas do crime de estupro e para obstaculizar um direito legalmente previsto no Brasil desde 1940".

"Seu resultado será dificultar o funcionamento e abertura de serviços de aborto legal após estupro, atualmente já escasso diante da dimensão do número de casos de violência sexual no Brasil", disse.

As entidades ainda pedem que o Congresso Nacional aprove com urgência o Projeto de Decreto Legislativo que "suste os efeitos da norma dada sua ilegalidade".