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Jamil Chade

Com foco na soberania, Bolsonaro chega à ONU negando vocação de assembleia

O presidente da República Jair Bolsonaro fala durante abertura da 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) -  William Volcov/Brazil Photo Press/Folhapress
O presidente da República Jair Bolsonaro fala durante abertura da 74ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) Imagem: William Volcov/Brazil Photo Press/Folhapress

Colunista do UOL

20/09/2020 04h04

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A cada ano, a tradição se repete. É do presidente brasileiro que as primeiras palavras são proferidas no palco da ONU (Organização das Nações Unidas), dando início a um desfile de chefes de Estado pela reunião mundial que já representou a esperança de um futuro melhor.

Mas, em 2020, Jair Bolsonaro e tantos outros líderes falarão por meio de uma tela, já que a pandemia obriga a realização de uma Assembleia Geral distinta. Na ONU, tudo estava sendo organizado para que o evento marcasse os 75 anos da entidade. Os planos tiveram de ser radicalmente modificados.

A festa, que já seria marcada por um mal-estar diante da encruzilhada no sistema multilateral, ficou ainda mais esvaziada.

Se Bolsonaro jamais foi um adepto do distanciamento social, neste caso da Assembleia Geral a distância entre ele e a comunidade internacional lhe cai como uma luva. No centro de seu discurso estará uma palavra: soberania.

Seja para defender a Amazônia ou para justificar suas decisões sobre a pandemia, o tom nacionalista o servirá para blindar contra críticas e justificar suas escolhas.

Para o governo brasileiro, o multilateralismo é uma ideologia e não será dela que virá uma resposta às necessidades dos países. Ao longo de meses, o chanceler Ernesto Araújo tem usado eventos, discursos e textos para fazer um ataque constante ao sistema e reforçar a ideia da soberania.

O recado é direto: "Não se metam em nossos assuntos"

O recurso ao princípio da não-ingerência em assuntos domésticos não se limita apenas ao discurso de Bolsonaro. Nos últimos meses, orientações passadas às diferentes missões do Brasil pelo mundo recomendam os diplomatas a ocupar os espaços na ONU e sempre pedir a palavra.

No lugar de defender soluções multilaterais, a ordem é a de reforçar o tom soberanista. Uma forma diplomática de mandar uma mensagem simples: não se metam em nossos assuntos.

Tal estratégia tem sido usada no Conselho de Direitos Humanos, nos debates em Nova York, na OMS e em vários outros fóruns. Entre as "vantagens" da tática está a de impedir e rejeitar controles externos, ainda que todos os mecanismos estejam previstos em tratados assinados pelo Brasil.

Brasil esnoba negociações multilaterais, mas fica à espreita

As demonstrações dessa estratégia vão além do discurso. De acordo com um embaixador europeu, o Itamaraty foi convidado de forma insistente a participar de uma aliança global pela defesa do multilateralismo, mas se recusou.

Numa recente reunião do grupo, em Genebra (Suíça), um diplomata brasileiro chegou a entrar na sala. Mas apenas para observar o que ocorria e se recusou a assinar lista de presença, segundo apurou a coluna.

Para alguns experientes negociadores, aos 75 anos da ONU, a relação com a entidade está em seu pior momento desde a redemocratização do país.

Do lado brasileiro, a atitude é de ataques públicos contra as lideranças dos organismos internacionais, como Tedros Ghebreyesus e Michelle Bachelet, além de insinuações de que o sistema estaria permeado por padrões progressistas e comunistas. Esse "vírus", segundo o Itamaraty, teria de ser freado.

"Asfixia" do multilateralismo começa por cofres vazios

Não é por acaso que pagar suas dívidas nas entidades internacionais não está entre as prioridades. Na ONU, 115 países dos 193 já pagaram toda sua contribuição anual. O Brasil não só não faz parte da lista como tem um dos maiores atrasos no pagamento.

O Itamaraty ainda não se uniu a uma declaração conjunta de quase todas as maiores economias da América Latina pedindo que os atrasos nos pagamentos sejam quitados.

Na ONU, o resultado da falta de dinheiro é real. No Conselho de Direitos Humanos, por exemplo, não há dinheiro para lançar novas investigações de abusos de direitos humanos e o risco é de que vários comitês tenham de suspender seus trabalhos.

Na OMS, nenhum centavo foi depositado em 2020 pelo governo brasileiro à entidade e a dívida supera a marca de US$ 32 milhões.