Presidente dos EUA tem país dilacerado para cuidar e, se possível, unificar
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Há pouco mais de 160 anos, um até então desconhecido político americano que buscava uma vaga no Senado dos Estados Unidos (EUA) usou uma citação da Bíblia para alertar: "Uma casa dividida contra si mesma não subsistirá". Tratava-se de um certo Abraham Lincoln, antes ainda da eclosão da Guerra Civil no país.
Em 2020, há por enquanto um só resultado definitivo na eleição americana: quem assumir a Casa Branca herdará um país profundamente fragmentado; uma sociedade em luto pela pandemia; doente pelas questões raciais não resolvidas; flagelado pela incapacidade de a maior economia do mundo garantir saúde a uma parcela de seus habitantes; marcado por uma desigualdade social profunda e minado por uma polarização ideológica explícita.
A eleição não enterrou o Trumpismo e ainda ganhou uma nova camada dramática de questionamento do sistema eleitoral. Nesta semana, antes mesmo de saber o resultado da votação, o candidato democrata Joe Biden alertou para a dimensão da divisão da sociedade americana. No campo republicano, a estratégia usada foi a de aprofundar e alimentar o racha, na esperança de se manter no poder. Mesmo que, pelo caminho, vidas tenham sido sacrificadas.
Ao se colocar diante de holofotes e gritar "eu venci", Trump refletiu nas bandeiras americanas a sombra de um país deformado pelo ódio que ele mesmo promoveu.
Ao abandonar por tantos anos uma parcela da população, a elite tanto dos democratas como republicanos abriu um fosso difícil de se transpor. Entre 1925 e a década de 70, a proporção da riqueza do país que foi parar nas mãos do 1% mais rico do país caiu de forma dramática. Mas, desde então, a concentração de renda explodiu.
Resgatar a alma da nação de Sojourner Truth, Ida B. Wells-Barnett, Claudette Colvin e Angela Davis será mais difícil que conseguir votos.
Mas não seria a primeira vez que o país passaria por um questionamento sobre a sobrevivência da experiência inaugurada pelos tripulantes do Mayflower.
Anos depois de alertar sobre a "casa dividida", Lincoln faria mais um discurso que marcaria a história dos EUA. Ao assumir o cargo de presidente para um segundo mandato, em 4 de março de 1865, ele disse:
"Ambos lêem a mesma Bíblia, e oram ao mesmo Deus; e cada um invoca sua ajuda contra o outro", disse. "Pode parecer estranho que qualquer homem se atreva a pedir a ajuda de um Deus justo para tirar seu pão do suor do rosto de outros homens; mas não julguemos para que não sejamos julgados. As preces de ambos não puderam ser respondidas; a de nenhum dos dois foi respondida completamente", constatou.
Sua mensagem era simples, mas profundamente difícil de ser aplicada num país que ainda enterrava seus mortos da Guerra Civil: a necessidade de uma reconciliação.
Ele implorava pelo fim da recriminação e do ódio, e que a nação se colocasse suas energias para se curar. Lincoln pediu que todos se unissem para "fechar as feridas da nação, para cuidar daquele que foi vítima da batalha e de sua viúva e seu órfão, para fazer tudo o que possa alcançar e acalentar uma paz justa e duradoura entre nós e com todas as nações".
Mais de um século e meio depois, a mensagem poderia ser repetida diante dos viúvos e órfãos da covid-19, da violência policial e de qualquer outro abuso cometido pela desigualdade.
Fechar as feridas não vai exigir apenas uma Bíblia ou um novo presidente. Tampouco resolverá uma receita que promete a volta nostálgica a um passado que, hoje, não teria seu lugar.
A reconciliação passa, acima de tudo, por dar garantia de direitos. Em qualquer idioma ideológico, direitos têm apenas uma tradução: a garantia de um futuro, inclusive para milhões de pessoas que não votaram pelo vencedor.
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