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Jamil Chade

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

"Esconda o passaporte brasileiro, se puder"

Passaporte brasileiro - Getty Images/iStockphoto
Passaporte brasileiro Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

06/05/2021 04h00

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Resumo da notícia

  • No evento que marca o século, o Brasil conquistou lugar garantido no imaginário coletivo do planeta e nos livros de história. E da pior forma possível

- Sr. Chade. O senhor tem documento de residência fixa na Europa?

- Sim.

- Então não traga seu passaporte brasileiro.

- Como?

- Por conta da covid-19, a apresentação de um passaporte brasileiro pode gerar muitas perguntas e existe o risco de que o processo atrase. Basta ter o documento de residência. Esconda o passaporte brasileiro, se puder.

Nesta semana, num trâmite burocrático banal em Genebra, fui surpreendido por uma funcionária que me sugeriu esconder meu documento e, no fundo, minha nacionalidade. Pelo tom de voz, pela amabilidade de seus gestos e por seu compromisso em dar uma solução para a pendência administrativa, estou convencido de que ela fez a sugestão com o único objetivo de me ajudar.

Ela apenas tentava evitar que o caso fosse tratado com algum tipo de discriminação, hesitação ou uma nova etapa de questionamentos sobre onde eu estive nos últimos meses, se tiver contato com algum brasileiro, etc.

Mas o que seu comentário demonstrou é que, hoje, ser brasileiro no exterior é ser alvo de constante questionamento, de desconfiança. A crise no país não é apenas uma das maiores do mundo. Mas a falta de controle por parte do estado e a recusa do presidente Jair Bolsonaro em lutar contra o vírus são vistas como elementos extras que aprofundam a destruição da credibilidade do país.

O que a funcionária disse apenas revelou um fenômeno que os brasileiros que vivem no exterior em plena pandemia já descobriram que terão de enfrentar: a percepção de que somos tóxicos.

Não se trata de algo exclusivo ao nosso país. No início da pandemia, atos de xenofobia e insultos foram acumulados contra chineses e, de uma forma geral, contra asiáticos. Quando a Itália se transformou no epicentro da crise europeia, não foram poucos os italianos que relataram como eram tratados com desconfiança pelo resto da Europa.

Na ONU, em organismos internacionais, ongs, a constatação é de que a pandemia abriu uma onda de ódio, discriminação e xenofobia de enormes proporções.

Talvez o aspecto mais irônico tenha sido o fato de que parte desse ódio foi incentivado por líderes políticos, entre eles Jair Bolsonaro, seus filhos e ministros.

Hoje, são os brasileiros - muitos dos quais votaram por Bolsonaro - que são alvos dessas reações discriminatórias. piadas e comentários irônicos. Nas redes sociais, a explosão dos estereótipos e ataques contra mulheres brasileiras ganharam uma nova dimensão diante das supostas piadas sobre a mutação do vírus.

A imagem deteriorada do Brasil no exterior não foi inaugurada com a pandemia. Ainda em 2019, a juventude europeia descobriu Bolsonaro e o colocou num patamar de vilão do clima. Agora, é o símbolo do absurdo e referência ao se falar em morte.

Uma imagem não é apenas uma questão de andar com a cabeça erguida ao percorrer o mundo. Construída, a imagem se reverte no desejo do mundo em visitar o país, em investir, em receber seus nacionais, em considerar o país como parte de um grupo que deve ser consultado sobre o futuro do planeta. Ou seja, a imagem de um país pelo mundo é parte de sua estratégia de desenvolvimento, de busca por recursos, de acesso a mercados e de garantia de respeito a seus cidadãos.

Reverter tal colapso levará muito tempo e ações concretas.

Mas num evento que marca o século, o Brasil conquistou um lugar garantido no imaginário coletivo do planeta e nos livros de história. E da pior forma possível.