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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Documentos revelam governo sem direção e desistência de 43 milhões de doses

O presidente Jair Bolsonaro conversa com o então chanceler, Ernesto Araújo, no Itamaraty - MATEUS BONOMI/AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO
O presidente Jair Bolsonaro conversa com o então chanceler, Ernesto Araújo, no Itamaraty Imagem: MATEUS BONOMI/AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

07/08/2021 07h00

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Resumo da notícia

  • UOL obteve acesso a quase 500 páginas de telegramas internos do Itamaraty e que revelam as negociações para a compra de vacinas da Covax
  • Governo chegou a enviar carta indicando interesse em adquirir 86 milhões de doses. Mas, menos de um mês depois, reduziu volume para 43 milhões
  • Planalto queria manter espaço para privilegiar acordos bilaterais. Mas ignorou ofertas, como a da Pfizer
  • Telegramas também indicam que governo foi informado que indústria farmacêutica já havia abandonado a cloroquina

A busca por vacinas por parte do governo brasileiro foi permeada pela ausência de medidas coerentes, contradições em atitudes adotadas com diferentes parceiros, indefinições e ideologia.

O UOL obteve acesso exclusivo a quase 500 páginas de telegramas enviados pela diplomacia brasileira, especificamente sobre as negociações para a criação da Covax, iniciativa para aquisição de vacinas na pandemia, e a participação do país na OMS (Organização Mundial da Saúde).

Os documentos, que servem como uma rara janela para o que ocorria nos bastidores num momento em que o vírus saía do controle no país, revelam, por exemplo, que o governo sabia da ineficácia da cloroquina e que a concorrência por vacinas seria intensa.

Os telegramas ainda confirmam os ataques do Brasil contra a OMS e revelam como o ex-chanceler Ernesto Araújo fez questão de usar encontros para martelar sua ideologia nacionalista.

Mas, acima de tudo, os documentos deixam claro um governo incoerente em suas decisões. Menos de um mês depois de anunciar às entidades internacionais que ficaria com 86 milhões de doses, o Brasil reavaliou sua posição e optou por comprar apenas metade.

O governo fez lobby para garantir que seus contratos bilaterais não seriam afetados se optasse por fazer parte do mecanismo internacional e buscou uma adesão repleta de flexibilidades para não se comprometer plenamente com a Covax.

Enquanto buscava nos bastidores autonomia para continuar a negociar contratos bilaterais e transferência de tecnologia, o que também se constata é que, naquele mesmo momento, o governo esnobou ofertas da Pfizer e de outras empresas. A CPI revelou como o governo chegou a ser bombardeado por propostas de vendas legítimas por parte de multinacionais, muitas delas ignoradas.

O Brasil ainda mudou de ideia sobre o volume de vacinas que iria comprar, modificando até mesmo seus compromissos oficialmente apresentados. Mesmo com preços abaixo do que seria, depois, negociado com a Covaxin, o projeto da Covax era recebido com dúvidas.

Ausente na origem

Em abril de 2020, a OMS e a União Europeia anunciaram a criação de uma espécie de consórcio que iria mobilizar recursos para garantir a compra e distribuição de vacinas, terapias e testes, o ACT Accelerator. O Brasil nem sequer fez parte daquela reunião.

Naquelas semanas e por meses, o princípio estabelecido era que o país que aderisse ao projeto compraria vacinas para atender a 20% de sua população.

Ernesto telegrama - Reprodução - Reprodução
Em 2020, Ernesto Araújo deu instruções para o Brasil reservar vacinas da Covax equivalentes a 20% da população; menos de um mês depois, cortou o pedido pela metade
Imagem: Reprodução

Pressionado até mesmo por senadores, o Itamaraty confirmaria sua adesão ao mecanismo global em 9 de junho de 2020, quando a diplomacia do país em Genebra notificou às instituições internacionais o interesse em particular do ACT Accelerator.

Não se tratava ainda do instrumento de distribuição de vacinas, a Covax. Mas era o embrião que serviria de guarda-chuva institucional para o mecanismo que seria criado nas semanas seguintes.

No dia 11 de junho, num telegrama enviado pela embaixadora do Brasil em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevedo, ao Itamaraty, ficava claro que, desde aquele momento, uma das metas do governo era a de garantir que o país tivesse influência no mecanismo e em seus critérios.

O texto revela como o Brasil buscou garantias da OMS de que os governos estariam evolvidos na definição dos rumos da iniciativa, e não apenas os técnicos da agência.

De acordo com o telegrama, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, "manifestou júbilo pela decisão do país" de aderir ao projeto. "It is a great news for WHO" ("É uma boa notícia para a OMS"), teria dito ele.

Naquele momento, o Brasil buscou outros interlocutores da OMS para entender de que forma as vacinas seriam distribuídas e insistiu em manifestar "surpresa" diante da falta de uma estrutura de governança que envolvesse os estados.

O telegrama ainda revela que o governo sabia que existia um "clima de competição [pelas vacinas] quando da descoberta de um produto seguro e eficaz".

No mesmo dia, outro telegrama revelava encontros com o CEO da Gavi, Seth Berkley, entidade que iria administrar o mecanismo de distribuição de vacinas. Na reunião, o executivo advertiu sobre a tendência de países de buscar "soluções individuais" e alertou como não haveria como atender a todos nos 18 meses seguintes.

Ali, o telegrama já indica que o Brasil teria de pagar para fazer parte da iniciativa. Mas o braço em Genebra destacava que a vantagem para o país seria o "gerenciamento de riscos em relação às vacinas candidatas" e que o projeto ofereceria alternativa "melhor gestão de recursos (escassos)", se referindo às vacinas disponíveis.

Brasil evita compromisso integral

Durante o mês de agosto, conforme a data-limite para a adesão dos governos ia se aproximando, telegramas apontavam que o Brasil buscava formas de conciliar uma participação na Covax e a manutenção de espaço para acordos bilaterais.

A escolha da OMS, diante da pressão de Brasil e outros países, foi a de rever seus critérios e abrir a possibilidade para diferentes formas de participação. No dia 18 de agosto, Tedros envia uma carta a todos os presidentes e chefes de governo, indicando que daria flexibilidade para quem já tinha acordos bilaterais com outras empresas farmacêuticas.

No mesmo dia, num telegrama, o posto do Brasil em Genebra pedia que a mensagem fosse passada para o Palácio do Planalto e alertava sobre as "inúmeras e importantes incertezas e indefinições".

Uma semana depois, no dia 24 de agosto, a diplomacia brasileira avisava que a OMS havia cedido. De acordo com mais um telegrama enviado para Brasília, "os países poderão decidir por ter 'opções de compras' de doses, em vez de se comprometerem, de antemão e integralmente, com a obrigação de adquirir doses até o teto do valor estabelecido nos contratos individuais".

Outra novidade: o projeto de que todos deveriam adquirir vacinas para o equivalente a 20% de suas populações mudava. A partir daquele momento, governos poderiam escolher a compra de vacinas para abastecer de 10% a 50% de seus habitantes.

No texto enviado para Brasília, o Itamaraty deixou claro que a opção de compra —e não um acordo de compromisso— seria "mais atrativa para países que já tenham acordos bilaterais com fabricantes de vacinas que também venham a fazer parte da carteira da Covax Facility".

"Por essa lógica, tais países poderiam dirigir melhor seus próprios recursos para vacinas candidatas outras, em reforço a estratégias nacionais de compras", disse o órgão do Brasil em Genebra.

"No caso do governo federal, que já tem conversações adiantadas para adquirir, bilateralmente, doses da vacina da AstraZeneca/Oxford, a opção 2, caso o país confirme sua adesão à Covax Facility, poderia propiciar oportunidade para melhor dirigir os recursos nacionais para as demais alternativas/candidatas", concluem.

No telegrama, a diplomacia ainda coloca em dúvida a questão da segurança das vacinas, considerando que a Covax estipularia que as empresas não poderiam ser responsabilizadas por eventuais danos.

"Os fabricantes poderão exigir proteção/imunidades amplas contra responsabilização legal ou judicial nos países em que suas vacinas venham a ser utilizadas. Trata-se, a meu ver, de aspecto sensível e que merece toda a atenção de especialistas brasileiros sobre eventuais limites e condições de eventual participação nossa no mecanismo. Cabe não esquecer que, pela própria urgência da resposta à pandemia, os processo de desenvolvimento e produção de vacinas estão sendo acelerados de maneira inédita, circunstância que não me parece menor na avaliação de riscos e da eventual latitude para tratamentos diferenciados, em nome da abreviação dos tempos ordinários para imunização", argumentou o posto do Brasil em Genebra.

Finalmente, num telegrama de 31 de agosto de 2020, o então chanceler Ernesto Araújo dá instruções para que o Brasil anuncie às entidades internacionais sua adesão ao projeto. Na carta, o ministro indicava que o país seguiria o modelo de "compras opcionais, na qual poderemos abrir mão de qualquer vacina oferecida". O compromisso, portanto, não era integral.

Brasil reduz compra de 86 milhões para 43 milhões de doses

Um dos principais pontos da carta, porém, era a confirmação de que a opção do Brasil era por adquirir um volume suficiente para um quinto da população do país. "Queremos adquirir, por meio da [Covax] Facility, opções suficientes para cobrir 20% de nossa população", confirmou Araújo, em carta.

O documento do então chanceler, porém, provaria não ser o fim do processo decisório no Brasil. No dia 15 de setembro, a versão final do acordo seria apresentada pela OMS e o Itamaraty constata a eliminação de pontos que interessavam ao governo.

Um deles era o fim da ideia de um conselho de participantes na Covax e uma estrutura que "não contempla mecanismo específico para envolvimento dos estados".

Outra frustração: os critérios de prioridade na distribuição de vacinas não levariam em conta a carga de doença num país e nem a renda per capita. A esperança do governo brasileiro era que, com esses critérios, o Brasil estivesse entre os primeiros a receber. Para a OMS, todos receberiam ao mesmo tempo. A versão final do acordo também não atendia ao pedido do Brasil de promover uma transferência de tecnologia.

Assim, no dia 22 de setembro, o Itamaraty anunciou à Covax sua adesão definitiva. Mas, ao contrário do que Araújo havia escrito na carta de 30 de agosto, o Brasil não pediria vacinas para 20% de sua população, mas apenas 10%. Na prática, no lugar de comprar 86 milhões de doses, o Brasil fechou em apenas 43 milhões e abriu mão do restante.