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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Para evitar lockdown, Brasil quis ter prioridade para receber vacinas

Apoiadores de Bolsonaro em ato na orla de Copacabana, no Rio, contra os governadores e o lockdown imposto em várias regiões do país - André Melo Andrade/Estadão Conteúdo
Apoiadores de Bolsonaro em ato na orla de Copacabana, no Rio, contra os governadores e o lockdown imposto em várias regiões do país Imagem: André Melo Andrade/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

07/08/2021 07h00

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O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) tentou influenciar nos critérios usados pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para distribuir vacinas. O objetivo era construir regras que acabassem beneficiando o país e, assim, evitassem a necessidade de medidas de lockdown.

Os documentos internos do Itamaraty, porém, revelam que a estratégia não foi aceita pela agência internacional, que insistiu sobre a necessidade de que todos os países recebessem os mesmos volumes proporcionais, ao mesmo tempo.

Ainda em junho de 2020, os diplomatas brasileiros em Genebra fizeram diversos encontros para pressionar por transparência e assegurar que governos nacionais pudessem ditar o rumo do mecanismo.

No dia 18 de junho, numa reunião com a OMS, o Brasil volta a pedir "mais transparência e mais envolvimento dos governos". Qualquer conselho que administrasse o mecanismo, segundo o Itamaraty, deveria ter "ampla participação e diversidade". Naquele momento, só a União Europeia e a OMS faziam parte da iniciativa.

Num telegrama de 23 de junho de 2020, o braço da diplomacia brasileira em Genebra explica para Brasília sua intenção de influenciar nos critérios de distribuição de vacinas.

O Itamaraty defendia que a distribuição ocorresse com base em "carga da doença, ponderada por renda per capita e tamanho da população", além de uma transferência de tecnologia. Ou seja, países mais afetados, mais pobres e mais populosos seriam atendidos primeiro.

Um dos argumentos era que, se fosse atendido com prioridade, o governo poderia não precisar de medidas de isolamento social, questionadas pelo presidente Jair Bolsonaro.

No dia 9 de julho, ao avaliar as regras de distribuição de vacinas, um dos telegramas alerta que um primeiro projeto da Covax, iniciativa para aquisição de vacinas contra a covid para países menos ricos, não incluiria os critérios defendidos pelo Brasil.

"Critérios de renda per capita não seriam mencionados, o que poderia ser eficiente para determinar a capacidade de os países adotarem outras medidas de saúde pública, como isolamento, já que a informalidade e a capacidade de prover recursos básicos durante 'lockdowns' estaria associada, em regra geral, a essa variável", indicou.

Entre junho e julho, o governo multiplicou reuniões para demonstrar que faria questão de dar as cartas se optasse por aderir ao projeto. Em 23 de junho, por exemplo, o Brasil se reuniu com Philippe Duneton, diretor da Unitaid, iniciativa global que promove inovações para lidar com doenças relevantes no cenário mundial. A diplomacia voltou a pedir esclarecimentos sobre como as decisões seriam tomadas. Na conversa, foi levantada a possibilidade de que a contribuição do governo brasileiro para a instituição fosse transferida para lidar com a covid-19, ampliando a influência do governo na questão.

No dia 3 de julho, os diplomatas estiveram com a CEO da Foundation for Innovative New Diagnostics, Catharine Boehme, e voltaram a insistir no envolvimento do governo na tomada de decisões quanto "às linhas estratégicas". A fundação lida com desenvolvimento de testes para doenças que acometem populações de países pobres. No dia 8 de julho, foi a vez de uma reunião com Richard Hatchett, CEO da Cepi, instituição que lidera o ramo de pesquisa de vacinas na Covax.

As dezenas de páginas de telegramas revelam como, em praticamente todas as reuniões, o foco do Brasil era o de não perder o controle sobre o que iria ocorrer no cenário global. No dia 10 de julho, por exemplo, numa reunião dos Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, o Itamaraty insistiu no mesmo tema de garantir "informações contínuas".

covax telegrama - Reprodução - Reprodução
Em conversa com a embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo, o diretor da OMS apelou para que o Brasil aderisse ao Covax
Imagem: Reprodução

Uma semana depois, o embaixador Fábio Marzano, e então chefe de um dos departamentos de maior influência no Itamaraty, queria garantias na OMS de que todos tivessem "voz ativa e decisiva na supervisão e tomada de decisões".

Ao terminar esses encontros, a embaixadora do Brasil em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevedo, indicou que teria atingido "suficiente massa crítica" para tomar a decisão de aderir ao projeto de vacinas. Mas a diplomata ainda sugere que Brasília promovesse maior coordenação entre os diferentes atores nacionais.