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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Relator da ONU pede que STF rejeite marco temporal e defenda indígenas

Representantes da aldeia Coroa Vermelha estavam na manifestação contra o marco temporal e pela demarcação de terras indígenas em outubro -  - Tiago Miotto /Cimi
Representantes da aldeia Coroa Vermelha estavam na manifestação contra o marco temporal e pela demarcação de terras indígenas em outubro - Imagem: Tiago Miotto /Cimi

Colunista do UOL

23/08/2021 08h43

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Relator Especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, Francisco Cali Tzay faz um apelo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) garanta os direitos dos povos indígenas a suas terras, e que rejeite um argumento legal promovido por agentes comerciais com o fim de explorar recursos naturais em terras indígenas tradicionais.

"A aceitação de uma doutrina de marco temporal resultaria em uma negação significativa de justiça para muitos povos indígenas que buscam o reconhecimento de seus direitos tradicionais à terra. De acordo com a Constituição, os povos indígenas têm direito à posse permanente das terras que tradicionalmente ocupam", disse o relator. A decisão do Supremo Tribunal - prevista em 25 de agosto - sobre o Recurso Extraordinário Nº 1.017.365, orientará o governo federal e os futuros tribunais na resolução de questões de terras indígenas e na abordagem dos direitos indígenas.

"Se o STF aceitar o chamado Marco Temporal em sua decisão sobre a demarcação de terras, no final deste mês, poderá legitimar a violência contra os povos indígenas e acirrar conflitos na floresta amazônica e em outras áreas", disse.

"A decisão do STF não só determinará o futuro destas questões no Brasil para os próximos anos, mas também sinalizará se o país pretende estar à altura de suas obrigações internacionais de direitos humanos e se respeitará as comunidades indígenas que não foram autorizadas a participar de processos legais que revogaram seus direitos de terra", disse Tzay.

Ele disse, ainda, que é vital que o Supremo Tribunal Federal - e todas as instituições e autoridades públicas - respeitem as normas legais, incluindo a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais.

O argumento legal em questão é conhecido como "marco temporal", o qual os indígenas temem que possa legalizar a invasão de suas terras. Interesses empresariais que buscam explorar terras indígenas para mineração e agricultura industrial argumentam que os povos indígenas devem provar que ocuparam as terras na época da Constituição do Brasil, adotada em 1988.

"Ironicamente, esta mesma Constituição deveria ter garantido seus direitos de terra", disse Tzay. Os povos indígenas e ativistas de direitos humanos argumentam que a Constituição não estabelece nenhum limite de tempo para estes direitos à terra indígena. Eles também argumentam que esta data arbitrária ignora o fato de que os povos indígenas podem ter sido removidos à força de suas terras antes disso.

"Os direitos dos povos indígenas à terra não decorrem de uma concessão do Estado, mas decorrem do próprio fato de que eles são os habitantes originais, e viveram nessas terras muito antes da chegada dos europeus ao Brasil", disse o relator. "Apelo ao Supremo Tribunal Federal para que defenda os direitos dos povos indígenas a suas terras tradicionais, territórios e recursos naturais", disse Tzay.

Desde o início do governo, mais de 50 denúncias já foram apresentadas ou feitas nos organismos internacionais contra o Brasil, algo inédito num período de democracia. Ainda que os temas incluam violência policial, meio ambiente e ataques contra jornalistas, a questão indígena desponta como um dos maiores motivos de constrangimento internacional para o país.

Há um mês, a assessoria especial da ONU para a prevenção do genocídio citou, pela primeira vez, o Brasil na lista de locais onde haveria tal risco para os povos indígenas. No Tribunal Penal Internacional, já são duas denúncias contra Bolsonaro que foram entregues por grupos nacionais contra o presidente. Ambas denunciam crimes contra a humanidade e crimes de genocídio.

Ainda que a ONU não tenha o poder de impôr sanções de forma autônoma contra um estado, a avalanche de denúncias criou um constrangimento internacional ao país.

Numa recente live, o Itamaraty insistiu que a ação de Bolsonaro nos territórios indígenas vai justamente num percurso contrário às acusações. "Temos adotado medidas positivas para proteger povos indígenas da pandemia, priorização da vacinação, envio de alimentos", disse.

"Houve uma política focada para proteger os povos indígenas", afirmou o diplomata João Lucas Quental, reconhecendo que existem "desafios".

Segundo ele, a taxa de mortalidade pela covid-19 em terras indígenas "tende a ser menor que população em geral". Na última denúncia em Haia, os dados mostram uma realidade radicalmente diferente, com uma taxa de letalidade entre os indígenas de 9%, contra uma média nacional de 5%.

Para o diplomata, porém, há uma "falsa a alegação de que há uma política de genocídio". "Pelo contrário, há uma política de defesa", completou.