Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Na ONU, Bolsonaro esconde estratégia de desmonte de direitos humanos

Colunista do UOL

11/02/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Resumo da notícia

  • Documento do Planalto para o Comitê da ONU faz referência a planos de direitos humanos de governos passados, sem citar nomes de ex-presidentes
  • Em resposta, indígenas, religiosos, ativistas e OAB apresentam dados que desmentem o informe oficial do Brasil

O governo de Jair Bolsonaro omitiu em um documento entregue para a ONU (Organização das Nações Unidas) toda a informação sobre suas políticas de direitos humanos, limitando-se a relatar as estratégias que existiam no país até 2018, antes de sua gestão, e usando programas de governos passados para defender seu suposto compromisso com direitos fundamentais.

O documento servirá de base para que o Comitê de Direitos Humanos da ONU avalie o país e promova uma sabatina sobre a situação brasileira em temas como direitos civis e políticos, minorias e racismo.

Diante da omissão, entidades da sociedade civil, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), indígenas e grupos religiosos apresentaram informações que contrastam com a versão oficial, acusando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, de liderar uma "cruzada ideológica".

Membros do governo explicaram para a coluna que o documento de base foi entregue para a ONU em 2020 e que, portanto, ele foi preparado no primeiro ano do governo Bolsonaro. O argumento era ainda de que a informação enviada se referia ao período entre 2004 e 2017 e, em alguns casos, até 2018.

O relatório circulou entre os peritos internacionais do comitê em agosto de 2021, mas a justificativa usada pelo governo sobre o período avaliado causou mal-estar entre ativistas. A percepção é de que o governo usou desculpas procedimentais para não se ver obrigado a revelar detalhes de sua própria estratégia.

Não há, nas mais de 50 páginas do informe submetido pelo governo, nenhuma referência aos planos de Bolsonaro para o tema de direitos humanos e nem orçamentos para os diferentes programas.

Houve tempo e espaço, porém, para que o governo explicasse num dos trechos do informe que a antiga pasta de Direitos Humanos tenha se transformado também em Ministério da Mulher e da Família, parte da cruzada ideológica da ala mais conservadora do bolsonarismo.

Grande parte do texto, porém, é permeada por explicações sobre políticas criadas ainda sob os governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, sem que os nomes dos ex-presidentes sejam citados.

A última vez que o Brasil havia sido submetido ao exame foi em 2004. Nos anos seguintes, a entrega de um novo informe por parte do estado brasileiro atrasou. Sob a gestão de Damares Alves, a pasta de Direitos Humanos se comprometeu a quitar os atrasos. Mas, frustrando a esperança de observadores internacionais, optou por não incluir nenhuma referência às próprias ações.

Um exemplo da omissão é o trecho do documento que trata dos povos indígenas. O informe oficial do país diz que "o governo brasileiro respeita o princípio constitucional da autodeterminação dos povos, como ilustrado, em todo o país, na demarcação das terras indígenas". O documento, porém, não revela que Bolsonaro prometeu publicamente que nenhuma nova terra seria demarcada em sua gestão.

No documento, o governo cita a trajetória do orçamento da pasta de Direitos Humanos. Mas oculta o que ocorreu nos três anos do governo Bolsonaro e apenas diz que "nos últimos anos, o governo brasileiro empregou vários esforços para inserir a agenda dos direitos humanos em todas as políticas governamentais desenvolvidas por vários órgãos da administração pública".

No capítulo sobre gênero, o informe oficial do governo aponta que "os dados indicam uma evolução positiva em relação à renda média em benefício das mulheres: enquanto a renda média dos homens apresentou um aumento de 31% de 2004 a 2011, a renda média das mulheres apresentou um aumento de 44% no mesmo período".

De acordo com o documento, sem citar o nome do presidente que comandava o país naquele momento, "o governo brasileiro começou a considerar o combate à violência contra a mulher como uma ação prioritária na agenda do governo, buscando fortalecer e aumentar as medidas e ações multisetoriais destinadas a combater e punir os perpetradores de tais delitos".

Mas não existem referências às denuncias que existem sobre como os recursos para a proteção da mulher caíram em anos recentes.

Violência, ódio e imprensa

A ocultação também ocorre quando o assunto é a segurança e violência policial. O texto, citando o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), indica que o número de pessoas mortas por intervenções legais foi de 8.000 entre 2006 e 2016. Mas não há referências à violência policial a partir de 2019, período denunciado por ativistas como de alta nas mortes.

O documento ainda aponta que, para "resolver este problema persistente do sistema de segurança pública brasileiro, o Governo Federal estabeleceu as 'Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública' em 2010 para reduzir gradualmente os índices de letalidade policial". Mas não cita qualquer projeto sob o governo Bolsonaro.

O informe também indicou que, em 2004, o Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos foi criado. Mas o governo oculta o fato de que o Brasil é, hoje, um dos países mais perigosos para um ativista.

No capítulo sobre a imprensa, o governo indicou que o direito à liberdade de opinião, expressão e informação está consagrado na Constituição Federal e destacou a aprovação, em 2011, da Lei de Acesso à Informação. No mesmo trecho, Brasília aponta como criou "um mecanismo para combater o discurso do ódio online". "É uma iniciativa interministerial para fomentar a participação cidadã na criação de um ambiente online livre de violações dos direitos humanos", disse, sem citar os frequentes ataques do presidente Bolsonaro contra a imprensa e o uso de milícias digitais para disseminar o ódio nas redes sociais.


Reação da sociedade civil

Se o governo tentou esconder sua política de direitos humanos, as entidades da sociedade civil fizeram questão de submeter aos peritos da ONU dezenas de páginas de denúncias sobre diferentes pautas que preocupam ativistas no país.

O Fórum ACT e o Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs), por exemplo, alertaram em um documento que "uma nova aliança de direita no Brasil, unida por partes do cristianismo, começa a atuar de forma muito articulada através de redes sociais, canais de televisão, rádios e jornais, difundindo conteúdos destinados a promover uma "guerra de cultura" destinada a apagar valores emancipatórios, pluralidade social, diversidade de gênero, debates sobre racismo estrutural e direitos da mulher do debate público, currículos escolares e universidades".

"A "guerra cultural" promovida por esses grupos difunde e articula a agenda antipluralista para que apenas uma verdade religiosa, um modelo de família, uma ideia de cidadania e um grupo particular de pessoas sejam protegidos pelo Estado", disse.

Segundo eles, o governo "intensificou ações baseadas no fundamentalismo religioso, caracterizado por extrema misoginia e aversão à diversidade sexual e de gênero". "Os grupos mais conservadores fazem lobby junto aos parlamentares e outras autoridades políticas para impedir qualquer perspectiva de diálogo e implementação de novos direitos para as mulheres, meninas, pessoas LGBTQIA+, povos e comunidades tradicionais", denunciou.

O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foi acionado pela reportagem, mas ainda não havia respondido até a publicação desta reportagem. O espaço está aberto para manifestações.

Já o Centro para Direitos Reprodutivos também denunciou as dificuldades que mulheres enfrentam para realizar abortos legais. "Durante a pandemia da COVID-19, o número de hospitais que ofereciam procedimentos de aborto legal caiu de 175 para 42. Treze dos vinte e seis estados do país não ofereciam acesso aos serviços de aborto legal", aponta.

A Conectas, por exemplo, apresentou sete documentos diferentes, denunciando casos de violência contra defensores de direitos humanos, violência institucional, migração, e o encolhimento do espaço cívico.

Já a OAB apresentou um documento de mais de dez páginas no qual ela detalha os ataques realizados por Bolsonaro contra jornalistas brasileiros.

Em outro documento também submetido às Nações Unidas, o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) ainda denunciou as investidas contra os povos indígenas, a crise sanitária gerada pela resposta do governo diante da pandemia e a falta de demarcação de terras.

Procurado pela reportagem desde quinta-feira para comentar as críticas das organizações, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não respondeu.