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Carta da ONU sobe o tom e denuncia crimes de Bolsonaro contra indígenas
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Resumo da notícia
- Grupos indígenas comemoram a cobrança de relatores da ONU e apontam que denúncia reforça queixa contra Bolsonaro em Haia
- Procurado, Itamaraty não deu resposta sobre o conteúdo da cobrança
O governo de Jair Bolsonaro viola tratados internacionais e ameaça a população indígena. O alerta faz parte de uma queixa apresentada por relatores da ONU e que foi endereçada às autoridades de Brasília no final de janeiro. Para grupos indígenas nacionais e especialistas em direito internacional, a denúncia é a mais forte já recebida pelo governo e reforça a queixa que existe contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional ao descrever os atos das autoridades brasileiras como sendo intencionais.
O documento é assinado na ONU pelos relatores Tendayi Achiume (Racismo), David R. Boyd (Meio Ambiente), Michael Fakhri (Alimentação), Irene Khan (Liberdade de Expressão), Mary Lawlor (Defensores de Direitos Humanos) e José Francisco Cali Tzay (Direitos Indígenas). Para membros até mesmo da organização, trata-se de uma das denúncias mais amplas já realizadas contra o governo e cobra respostas sobre o que está sendo feito para remediar a situação.
Na carta, obtida pelo UOL, os relatores comunicam ao governo que receberam alegações de "discriminação sistêmica e estrutural contra os povos indígenas que tem sido exacerbada devido à pandemia da covid-19". Procurado, o Itamaraty não respondeu à reportagem sobre qual teria sido a reação do governo diante da queixa e nem se uma explicação foi apresentada.
Na avaliação dos relatores, as informações recebidas levantam preocupações de que essas políticas e práticas discriminatórias violariam as obrigações do governo em diversos tratados, entre eles o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e as normas internacionais contidas na Declaração e Programa de Ação de Durban e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
"Estamos alarmados com relatos de que a discriminação racial sistêmica e a violência racista contra os povos indígenas têm sido exacerbadas nos últimos anos, sendo esta regressão acelerada pela resposta pública e privada à pandemia da covid-19", destacam os peritos.
Segundo eles, a atual pandemia tem "agravado profundamente o racismo sistêmico contra vários grupos no Brasil, particularmente os povos indígenas". "Organizações da sociedade civil relatam que enquanto esses povos enfrentam há muito tempo a violência racista e anti-indígena, discriminação, privação e discurso de ódio, a resposta do governo à covid-19 e os efeitos racialmente desproporcionais da pandemia exacerbaram o escopo e o custo humano do racismo sistêmico no Brasil", constatam.
Críticas contra Bolsonaro
Na carta, os peritos apontam como os povos indígenas no Brasil enfrentam um cenário jurídico, político e social que "promove a desigualdade racial e limita seus direitos humanos".
Se na semana passada, Bolsonaro recebeu de seu próprio governo a Medalha do Mérito Indigenista, a carta revela uma outra percepção internacional sobre o presidente brasileiro.
"De acordo com as informações recebidas, desde sua eleição em 2018, o presidente brasileiro tem supostamente comparado as terras indígenas aos 'zoológicos' e aos povos indígenas que as habitam como 'animais em cativeiro', e declarou a necessidade de integrar os povos indígenas, que estão supostamente em uma 'situação inferior', em um chamado 'Brasil real'", destacaram os peritos.
Eles ainda lembram como o governo também criticou o "exagero" das terras indígenas, especialmente na Amazônia brasileira, e priorizou a exploração econômica de tais territórios sobre os direitos territoriais dos povos indígenas e os graves impactos sobre o meio ambiente.
"O governo tem promovido estereótipos de que os povos indígenas são universalmente pessoas que vivem na pobreza, são manipulados por organizações não governamentais estrangeiras e 'desperdiçam' o enorme potencial de lucro econômico em seus territórios", diz a carta.
"De acordo com as informações recebidas, algumas autoridades descreveram os líderes indígenas e organizações não-governamentais como inimigos do país. Esta criminalização e o desprestígio oficial influenciaram a política governamental e aumentaram a violência contra os defensores dos direitos humanos que operam em nome dos povos indígenas ou que trabalham em defesa do meio ambiente", denunciam.
Segundo eles, várias comunidades indígenas têm sido alvo de violência, ameaças, discurso de ódio ou tratamento discriminatório que têm sido agravados no contexto da pandemia.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) chega a apontar que o teor da carta é o mais forte já recebido pelo governo. Três fatores levaram o grupo a concluir neste sentido: o primeiro é o fato de que o documento é assinado por alguns dos principais relatores da ONU. Um segundo aspecto é conteúdo considerado como "contundente" e elevando o nível das acusações contra o estado brasileiro de crimes contra os povos indígenas.
Mas o que mais chamou a atenção dos grupos indígenas é o uso de termos como "intencional" e "proposital" para descrever o que ocorre na política nacional. Para o CIMI, por exemplo, tais palavras têm um peso importante no direito internacional e ampara denúncias de crimes contra a humanidade.
Pandemia amplia crise
Outra constatação dos peritos, de fato, é que a covid-19 aprofundou os problemas. "A pandemia exacerbou a violação sistêmica das obrigações legais internacionais. Estas incluem o direito à participação política, o direito à liberdade de expressão e opinião, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião ou crença; o direito à saúde, o direito a um ambiente saudável, o direito à alimentação; e o direito à seguridade social", destacam os relatores.
Uma das críticas se refere ao fato de que a Secretaria Especial de Saúde Indígena conta com casos de covid-19 somente quando registrados em terras indígenas oficialmente homologadas.
"Isso torna invisíveis as infecções e mortes dos indígenas pela covid-19 se eles vivem em territórios que ainda não estão homologados ou em áreas urbanas", alerta a carta.
"Os povos indígenas não reconhecidos não recebem cuidados das Casas de Apoio à Saúde Indígena. Em vez disso, eles são encaminhados ao Sistema de Saúde Pública, onde frequentemente sofrem discriminação por causa de sua identidade indígena. Este tratamento mostra a falta de respeito pelo direito legal ao auto-reconhecimento por parte dos membros dos grupos indígenas", denunciam.
Os peritos também destacam como a taxa de letalidade da covid-19 entre os povos indígenas é significativamente maior do que a média da população brasileira. "A elevada vulnerabilidade das populações indígenas às doenças respiratórias, que foram reconhecidas como vetores de genocídio indígena em vários momentos da história brasileira, coloca os povos indígenas em maior risco de complicações da COVID-19", destaca.
Eles ainda apontam que o sistema de saúde indígena enfrenta infraestrutura inadequada, equipamento de proteção pessoal insuficiente, estoque reduzido de medicamentos importantes, alta rotatividade de profissionais médicos e dificuldades em fornecer treinamento adequado.
A carta ainda destaca como o orçamento da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) nos primeiros cinco meses de 2020 foi a mais baixa dos últimos dez anos. Apesar da situação de emergência, apenas 39% dos fundos federais para combater a pandemia entre os povos indígenas foram realmente distribuídos em 2020.
"Muitos líderes tradicionais e anciãos, que carregavam consigo parte da memória cultural dos povos indígenas, morreram devido à covid-19", alertou.
Os peritos ainda apontam como, durante a covid-19, várias obras e projetos, com potenciais impactos sobre os direitos humanos e o meio ambiente, continuam a ser planejados e executados em territórios indígenas sem consulta às comunidades afetadas.
A pandemia ainda agravou a violência contra as comunidades indígenas. "Devido à falta de apoio e à resposta lenta das agências governamentais, as comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas buscaram projetos de autodefesa e construíram barreiras sanitárias como forma de isolar seus territórios e reduzir a propagação do coronavírus em suas comunidades", disse.
"Essas barreiras também visavam impedir ou diminuir a entrada de mineiros, madeireiros e garimpeiros de terra, que cada vez mais escalaram sua entrada em territórios indígenas durante a pandemia. Apesar desta estratégia, muitas destas barreiras sanitárias, localizadas nas entradas das comunidades, têm sido alvo de ataques. Ao mesmo tempo, a política nacional de proteção dos defensores dos direitos humanos tem experimentado desorganização e falta de financiamento, o que tem limitado seu funcionamento federal", denunciam.
A carta ainda é concluída com uma série de cobranças. "Embora não queiramos julgar a exatidão destas alegações, estamos profundamente preocupados com o fato de que os povos indígenas têm historicamente enfrentado altos níveis de discriminação racial sistêmica no Brasil, e esta discriminação racial sistêmica foi recentemente exacerbada pela pandemia", disse.
"Exortamos o governo a assegurar que os povos indígenas, e outras pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo os defensores dos direitos humanos, recebem as proteções legais e apoios sociais que lhes permitem exercer plenamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, conforme reconhecidos pelo direito internacional", completam.
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